ARTIGOS

 

 

Algumas considerações acerca da tentativa de suicídio na adolescência*

Renata Fidelis**

 

 


Neste trabalho, iremos considerar a tentativa de suicídio na adolescência em sua vertente de apelo. A tentativa de suicídio, na infância e na adolescência, feita por sujeitos neuróticos implica sempre num apelo. Traduz uma dificuldade no relacionamento com aquele que o sujeito institui no lugar de Outro, um apelo à atenção do Outro. Através de um espaço onde o sujeito possa falar, esta dimensão de apelo vem à tona. Passemos então a alguns fragmentos de um caso clínico atendido no Ambulatório do NESA (Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente).

Raquel1 é uma jovem de 13 anos que chega ao setor de acolhimento do NESA com uma queixa da mãe, de que ela não a ajuda em casa, que a ofende com freqüência e que o pai a coloca como intermediária de sua relação com sua mãe. Os pais de Raquel são separados desde que esta tinha dois anos, aproximadamente. O pai contribui financeiramente com os gastos da casa e a educação da filha, mas de uma forma curiosa: compra coisas caras, instala ar-condicionado e TV a cabo, e no entanto, segundo reclamação da mãe, não há dinheiro suficiente nem mesmo para pagar a conta de luz. Além disso, a mãe traz uma preocupação sobre falta de relação de Raquel com o pai, pois diz que eles não têm muito contato e a filha fica chateada, mas não consegue falar sobre isso com ele.

 Os pais não conseguem dialogar, nem quando se trata da filha, rapidamente a direção da conversa volta ao conflito entre eles. A mãe apresenta uma demanda de que Raquel a compreenda, que seja amiga dela, e a adolescente é colocada e se coloca em uma posição desconfortável, da qual se queixa. A mãe também relata não entender a razão de Raquel ter atitudes de criança: “ela quer tudo na mão e quando as coisas não saem do jeito dela, bate a porta e me ofende. Depois ela pede desculpas, mas assim não dá! Somos só nós duas, ela tem que ser mais parceira” (sic).

O pai de Raquel é um homem muito ocupado, segundo relato da adolescente. Não tem tempo para sair com ela restringindo os encontros aos momentos em que sai com a filha para comprar-lhe algo. Ela considera que tudo ficou mais difícil quando a esposa atual de seu pai ficou grávida, há quatro anos. Nasceu um menino que apresenta uma deficiência que Raquel define como uma “alteração no cérebro”, apresentando dificuldade para andar e falar. Diz que entende que o menino precise da atenção do seu pai, mas afirma que ela também precisa. O pai marca encontros com ela, mas os desmarca ou por motivo de trabalho ou por causa do tratamento do filho. Raquel desconfia que a esposa do pai não quer que eles se encontrem pois, quando encontra o pai e a esposa liga, ele diz que está no trabalho e nunca diz que está com ela.

No início do tratamento, o pai faltou às entrevistas agendadas, alegando os mesmos motivos relatados pela filha nas sessões. Após minha insistência em chamá-lo ele veio. Nas entrevistas que pude realizar com ele, mostrou-se preocupado com a filha estar vivendo com uma mulher tão confusa quanto sua ex-mulher. Queixa-se de que ela não consegue organizar a casa e nem a própria vida, estando desempregada há bastante tempo. Entretanto acha que investindo na educação (pagando escolas, curso, internet) da filha está fazendo a sua parte, pois diz que em breve ela já será independente. Diz estar no momento mais voltado para o filho e que Raquel já é quase adulta. Parece ter uma postura submissa frente às mulheres de sua vida o que dificultou a ele construir uma barreira contra os excessos da mãe de Raquel.

O pai critica a mãe e vice-versa e Raquel se vê no meio dessa complicada relação. Apresenta uma demanda excessiva de amor aos pais. Há quatro anos, ela tentou o suicídio. Colocou uma cadeira próxima à janela e disse para sua mãe que iria pular. Não concretizou o ato, mas conseguiu deixar sua mãe muito assustada. Foi levada a um acompanhamento psicológico de curta duração. Na mesma época começou a apresentar dificuldades escolares e a se desinteressar pelos programas com os amigos. Cabe destacar que justamente naquilo que mais o pai investe e cobra da filha, um bom desempenho escolar, é justamente onde Raquel fracassa. Essas manifestações parecem portanto ter um direcionamento: trata-se de um apelo à figura paterna, pois Raquel diz que por não conseguir falar, acaba agindo de forma que depois ela se arrepende. Diz que é agressiva com a mãe, mas que não aguenta ver “suas coisas misturadas com as da mãe” (sic).

Da relação exclusiva à entrada de outros objetos de amor

Freud formula uma relação inicial do sujeito com a mãe. A mãe é o primeiro objeto de amor tanto para o menino quanto para a menina. Durante o complexo de Édipo a menina muda de objeto, passando a uma relação edípica com o pai fadada ao fracasso. A subsistência deste laço com a mãe produz uma fixação de gozo devastador para a menina, bem como a decepção edípica acarreta uma demanda persistente de amor (Saruê, 2008).

Freud (1905) nos fala sobre o desenvolvimento da sexualidade, transformações que seguem uma temporalidade não contínua. Na adolescência, chamada de puberdade por Freud, a pulsão sexual tem uma nova meta sexual, busca a descarga. A pulsão que era predominantemente auto-erótica encontra o objeto sexual. É no encontro com o sexo que o sujeito é chamado a tomar posição diante da partilha dos sexos. Desse encontro não há como escapar, a partir dele cada sujeito irá traçar um destino singular. Esse encontro é na verdade um reencontro, pois cada um deve produzir o objeto de sua escolha sexual através de um trabalho de investimento e desinvestimento das imagens objetais que povoaram seu mundo infantil (Garcia, 2008). O sujeito se vê diante da tarefa de dominar o complexo de Édipo, libertar-se da autoridade dos pais, para que possa constituir outros vínculos amorosos.

 Raquel apresenta uma dificuldade de se envolver com os meninos, diz que sua mãe não a deixa namorar e que ela, por sua vez, também não deixa que sua mãe tenha um relacionamento amoroso. É uma relação ambivalente, com um forte conflito de rivalidade. Parece tão presa nessa relação com a mãe que não consegue investir em outras relações amorosas. Apresenta dificuldades diante da tarefa árdua de desligamento da autoridade dos pais.

“Contemporaneamente à subjugação e ao repúdio dessas fantasias claramente incestuosas, consuma-se uma das realizações psíquicas mais significativas, porém também mais dolorosas, do período da puberdade: o desligamento da autoridade dos pais, unicamente através do qual se cria a oposição, tão importante para o progresso da cultura, entre a nova e a velha gerações” (Freud ,(2002 [1905]), p. 103 e 104)

A mãe de Raquel diz que não consegue arrumar emprego por conta de cuidar da filha, pois tem medo de deixá-la sozinha. Certa vez fala com Raquel que vai deixá-la com seu pai, que ele tem que responsabilizar-se pelos cuidados com ela também. Raquel chega na sessão seguinte a este fato muito angustiada e diz “se nem minha mãe, nem meu pai me quiserem onde eu vou morar”.

O que está em questão é o lugar de Raquel no desejo dos pais. Desde o nascimento de seu irmão, Raquel se questiona sobre seu lugar enquanto moça na família. Sente-se rejeitada pelo pai, a partir da gravidez de sua nova companheira. Exacerba, portanto, sua demanda de amor. Julga-se incapaz de ser amada e se identifica com o que é rejeitado. Ela tenta, pela via imaginária das identificações, localizar-se em alguma parte. Diante da angústia suscitada pela identificação do sujeito ao nada – “eu não sou nada para ele”- o sujeito está fora de toda representação possível. Há na tentativa de suicídio um apelo ao Outro, o sujeito exige ser sustentado.

A mãe cobra dela que assuma uma posição que não é a de filha. Espera que uma menina de 13 anos seja sua amiga e tenha atitudes de adulta, e a adolescente tenta responder a isto, mas evidentemente e, felizmente, falha. Provavelmente, Raquel se vê entre os pais e não como filha destes e isto não é sem conseqüências, ainda mais se considerarmos que neste momento ela se encontra às voltas com a questão: “O que é ser mulher?”. O impossível a simbolizar do ser mulher ocupa a adolescente. A jovem parece solicitar a intervenção paterna nessa relação confusa com a mãe. A eficácia da função paterna, que justamente viria barrar os excessos da mãe e intervir na “mistura” mãe-filha, sofre uma queda.

A carta endereçada aos pais

Após algum tempo de atendimento, a mãe faz um contato telefônico desesperada, dizendo que encontrou na escrivaninha da filha uma carta de despedida. Diz que ela pede perdão pelo que ia fazer, mas não estava suportando a situação, queria que o pai fosse mais presente. No final da carta dizia que a mãe era batalhadora, amorosa, completa. A mãe me pergunta o que fazer. Digo que se ela encontrou a carta, não podia ignorar isto, deveria conversar com a filha. Raquel havia deixado a carta em cima de sua escrivaninha, de maneira que a mãe pudesse encontrar. Após a volta da escola os pais foram almoçar com Raquel e falaram o quanto estavam preocupados com ela. Na sessão seguinte, quando questiono sobre a carta, Raquel diz que era bobagem, que nem lembra direito o que escreveu. Fala sobre o fato quase inédito de almoçar com os pais e diz “viu o que é preciso para que eles se preocupem”.

Esse caso nos faz pensar na importância dos pais para o adolescente. A função que os mesmos exercem é fundamental para que o filho possa vir a se separar simbolicamente dos pais. Os pais, às vezes, se separam dos filhos antes destes poderem se separar deles, de forma que a única solução, encontrada pelo adolescente nesse momento, em que se vê abandonado, é a de lutar desesperadamente pela atenção daqueles (Alberti, 2004). A tentativa de suicídio se inscreve na série de dificuldades e problemas da adolescência quando o jovem não encontra a sustentação dos pais.

A constituição do sujeito, enquanto aquele que poderá vir a sustentar seu desejo ocorre num processo de alienação/separação. A primeira relação de um bebê com o mundo se dá através de um Outro que o preexiste, que no caso são os pais ou seus substitutos. À medida que o bebê cresce, incorpora a alteridade aos poucos. A entrada da função paterna viabiliza uma interdição a ligação de exclusividade com a mãe, dando a possibilidade do sujeito vir a se constituir como desejante. A definitiva incorporação do Outro marca o final da infância, possibilitando o processo de separação. Esta incorporação se dá através de uma identificação com os pais com a conseqüente constituição do supereu. A separação é dos pais imaginarizados e idealizados, processo doloroso e crucial, segundo Freud (1905). Mas, este não é um processo que se dê sem idas e voltas. Haverá momentos em que o sujeito precisará retornar à relação que mantinha com os pais em suas tentativas de suportar a separação. É preciso que os pais suportem este movimento dos filhos, não abrindo mão da responsabilidade de acompanhá-los em sua trajetória. O efeito da desistência dos pais é desesperador: o adolescente se vê deixado cair, buscando saídas trágicas, como a tentativa de suicídio.

A chegada de Raquel a um espaço de escuta e a constituição de uma demanda de tratamento foi uma dificuldade que merece ser destacada. Em muitos momentos Raquel dizia que não tinha mais o que falar, que o problema estava nos seus pais e que não acreditava que a relação deles fosse mudar. Para nós, tratava-se, como é comum na clínica com adolescentes, de lidar com demandas diferentes, a dos pais e a do adolescente. E ainda mais, tratava-se de possibilitar que o sujeito falasse para construir a demanda de tratamento.

É importante também a intervenção com os pais nas entrevistas preliminares, no sentido de que eles possam se implicar naquilo que trazem como uma queixa em relação aos filhos.

A aposta do analista ao receber um adolescente é de que o sujeito, ao se colocar a falar, enderece uma demanda sobre aquilo que não sabe, mas que lhe concerne.

Através do espaço analítico, onde Raquel pôde colocar suas questões e falar daquilo que se colocava como ato e sintomas, pôde-se trazer à tona a dimensão de apelo aos pais.

 

 

Referências Bibliográficas

ALBERTI, S. Esse sujeito adolescente. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996.

ALBERTI, S. O adolescente e o Outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

FREUD, S. Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2002[1905].

GARCIA, A. O Édipo no tempo do adolescer. In: Édipo não tão complexo. Escola Letra Feudiana, Ed. 7letras, 2008.

SARUÉ, S. Decepção edípica e transtornos no tipo de escolha de objeto na adolescência. In: Édipo não tão complexo. Escola Letra Feudiana, Ed. 7letras, 2008.

 

 

Notas

* Trabalho realizado no Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente, sob a orientação da Drª Sonia Alberti

** Residente do segundo ano do Curso de Especialização em Psicologia Clínico-Institucional - Modalidade Residência Hospitalar.

1 Nome fictício.