ARTIGOS

 

 

Considerações Sobre o Luto na Clínica com Idosos*

Ana Beatriz Raimundo de Castro**

 

 


Pretendemos com este trabalho tecer algumas reflexões sobre a questão do luto na clínica com idosos a partir da experiência no ambulatório do Núcleo de Atendimento ao Idoso (NAI) do Hospital Universitário Pedro Ernesto.  Neste ambulatório são realizados atendimentos em uma abordagem interdisciplinar voltada para saúde do idoso. O serviço de psicologia atua no NAI atendendo alguns idosos e cuidadores a partir da solicitação da equipe multidisciplinar.

Mucida (2006) afirma que o sujeito do inconsciente não envelhece e que a velhice não é uma estrutura, nem um “tipo clínico”. Contudo, aponta que a tese “o sujeito não envelhece” não recobre toda a problemática da clínica com idosos, pois, advém com a velhice modificações e uma sucessão de perdas importantes no corpo e nos laços sociais que traçam efeito sobre o sujeito.

Desta forma, há o atemporal – o sujeito não envelhece -, como também um tempo que passa marcando a velhice no real do corpo e por muitas perdas que serão mais incisivas e inexoráveis com a idade. (MUCIDA, 2006, p. 181).

Castilho (2007) nos aponta que com freqüência a queixa dos idosos em análise gira em torno das muitas e concomitantes perdas a que estes foram submetidos. Remetendo-nos assim, a pergunta sobre o que é possível, em termos de trabalho de luto, a partir da entrada da escuta de um idoso.

Freud (1915) define o luto como uma reação normal ligada à “perda de um ente querido, de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como país, a liberdade e o ideal de alguém, e assim por diante”.(p.275).

O luto tem como características, segundo este autor, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar e a inibição das atividades.  Sendo importante marcar, que embora o luto envolva afastamento do que constitui a atitude normal para com a vida, este não é uma patologia e deve ser superado após certo espaço de tempo a partir da realização de um trabalho.

A paciente Francisca1 está sendo atendida pela psicologia há aproximadamente um ano e meio, tendo sido encaminhada pelo médico que a estava acompanhando, por estar muito triste devido à morte recente de seu marido.  Esta era casada há mais de cinqüenta anos.

Ao chegar ao atendimento, esta traz como está complicado lidar com toda essa situação, diz que tem andado muito ansiosa, sem paciência, triste e desanimada. Relata que era muito ligada ao marido e que agora não sente vontade de fazer mais nada. “Eu adorava pintar meus quadros e fazer artesanatos, mas agora não tenho vontade de fazer nada, tudo perdeu a graça”.

Percebemos com a fala de Francisca uma perda de interesse pelas atividades e pelo mundo externo, que podem ser explicados pelo trabalho de luto no qual o ego está absorvido, pois, como nos aponta Freud (1915), o luto normal supera a perda de um objeto, porém enquanto persiste utiliza todas as energias do ego.

Cabe salientar que luto consiste em um trabalho de retirada da libido de suas ligações com o objeto amado, que foi desde a realidade perdido. Este trabalho, porém, não é simples, pois “é notório que as pessoas nunca abandonam de bom grado uma posição libidinal, nem mesmo, na realidade, quando um substituto já se lhes acena” (FREUD, 1915, p.276/277).

No segundo atendimento, Francisca traz um sonho que havia tido no qual seu marido aparecia com as mãos cheias de dinheiro e dizia para ela não se preocupar. Esta relata que estava muito preocupada com sua situação financeira, pois há três meses estava tramitando na justiça o processo para o recebimento da pensão deixada pelo marido. Afirma que o marido sempre foi muito preocupado com ela e que no sonho foi como se ele viesse “salvá-la”.

Ao longo dos atendimentos, Francisca trouxe que estava tendo com freqüência, sonhos em que ficava agressiva com o marido ou com pessoas que não conhecia (em algumas situações que julgava injusta), como também sonhos que esta denominava de “aventura” (em lugares selvagens ou em situações perigosas).  Recolhemos clinicamente a partir de suas associações, que estes sonhos indicavam um trabalho que estava sendo realizado pela paciente a partir de uma perda importante.

Francisca fala que em sua casa os moveis são os mesmos desde seu casamento e que não costuma substituir as coisas, nem trocá-las de lugar, diz: “eu não fico desejando, eu me contento com o que eu tenho”.  Frase que indica, talvez, a dificuldade desse sujeito em substituir, apontando assim, para uma possível dificuldade no trabalho de luto.

Esta narra que sempre foi muito sozinha e que não gosta de estar se relacionando com as pessoas, dizendo: “eu nunca tive um amigo desses que vão à sua casa”.  Relata que mora na mesma rua há cinqüenta anos e mal conhece os vizinhos.  Fala que nunca sentiu falta de estar próxima a outras pessoas, pois era muito ligada ao marido.  E afirma: “eu me criei sozinha”.

A partir das minhas intervenções equivocando estas falas da paciente, algo se colocou como questão e esta passou a se perguntar se realmente era “interessante” ser assim e se seria possível ser de outro modo.  

Francisca diz que os atendimentos fazem muito bem para ela, pois está se sentindo mais calma e com mais paciência. Conta que guarda muito para si “as coisas” que acontecem, e que está podendo falar destas “coisas” comigo, e diz: “eu não sou de falar muito, mais aqui falo igual a um papagaio”.

Percebemos aqui que algo da transferência opera. Mucida (2006) enfatiza que a transferência é condição essencial para que haja análise. Freud (1915) fala da transferência como motor e resistência para o trabalho analítico.  

A partir do trabalho a paciente associa uma queda por ela sofrida, há um tempo, com o medo que está de atravessar a rua.  Relata ter a sensação de que os carros irão para cima dela e que irá ser atropelada. Ao solicitar que falasse mais sobre este medo, Francisca o relaciona a duas outras perdas, a do filho (há muitos anos atrás) e a da irmã (há um ano).

A fala de Francisca nos aponta que a perda do marido atualizou as perdas do filho e da irmã, ou seja, uma perda importante atualizou outras perdas, relançando para o sujeito algo que é estrutural, o limite, ou em termos freudianos, a castração.

Francisca afirma que tem muita dificuldade em lidar com a morte, que para ela é complicado dizer que alguém morreu. Como nos mostra Freud em “Nossa atitude para com a morte”, há uma tendência nossa em por a morte de lado, para eliminá-la da vida.

De fato, é impossível imaginar nossa própria morte e, sempre que tentamos fazê-lo, podemos perceber que estamos presentes como espectadores.  Por isso, a escola psicanalítica pôde aventurar-se a afirmar que no fundo ninguém crê em sua própria morte, ou, dizendo a mesma coisa de outra maneira, que no inconsciente cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade. (FREUD, 1915, p.327).

A paciente relata que seu marido “morreu dormindo”, e que para ela era como se ele não estivesse morto, e sim, como se este simplesmente não estivesse acordado, não estivesse ali. No decorrer do trabalho esta pôde dizer que seu marido havia morrido. Em Luto e Melancolia Freud indica que no luto há a necessidade de um “tempo para que o domínio do teste da realidade seja levado a efeito em detalhe, e que, uma vez realizado o trabalho, o ego consegue libertar sua libido do objeto perdido”.(FREUD,1915, p.285).

Com o percurso dos atendimentos Francisca formula que com a morte do marido esta havia perdido também um lugar, e diz: “eu era o escudo dele”. Castilho (2007) aponta que Lacan no Seminário da Angustia “encaminha a especificidade do luto como trabalho, procurando demarcar sua função com relação ao campo do Outro” (p.175).  E afirma que este aborda a questão definindo que apenas estamos de luto por “alguém de quem podemos dizer eu era a sua falta” (LACAN 30 /01 /63 apud CASTILHO, 2007, p.175).  Percebemos na frase da paciente que ela vai situando uma certa localização em torno da perda de um lugar, retornando para Francisca algo que este lugar representava.  

Francisca diz que não está mais se isolando e que está conseguindo se aproximar mais das pessoas, o que diz ser muito bom para ela, pois esta deixando de se uma “ostra”.  Castilho (2007) faz um distinção entre isolamento e solidão, marcando “que isolar-se , apresenta-se como o que pode haver de mais desarticulador na relação do sujeito com seu desejo” (p.175).

Francisca afirma que esta conseguindo voltar a escutar música (o que não fazia desde a morte de seu marido) e que esta “mexendo nas coisas”. Diz que está “revendo e reorganizando algumas fotos e mudando as coisas de lugar”.

O luto é um processo “prolongado e gradual” (FREUD, 1915, p.289) com uma temporalidade singular para cada sujeito, porém ao fim deste trabalho o ego fica novamente livre.  Como bem define Castilho (2007) o trabalho de luto re-situa o campo narcísico e o “rodeio do desejo” (p.172).  

Assim, quando convidamos um idoso/ sujeito a falar de suas perdas, a nossa aposta é que sob transferência o sujeito possa permitir enodar a pergunta em torno do limite, da finitude e a questão do desejo. Dito de outro modo, trata-se aqui de favorecer que o encontro com as perdas, com a idéia da proximidade da morte, da finitude, opere indicando a questão do limite e tornando urgente a fruição e um balaço da vida.

Cabendo assim, ao analista acolher e sustentar o percurso a ser feito no trabalho de luto. Acompanhando, a cada vez, o que destas perdas é reordenável a partir da entrada da escuta, o que é permeável num trabalho pela fala. 

Francisca estava há algumas sessões falando sobre sua vontade de ir a um baile, mas que não sabia se conseguiria. Em uma determinada sessão esta chega relatando que havia ido a um baile “sem querer”, pois havia sido convidada para representar o marido em uma homenagem aos funcionários no local onde ele trabalhava, e que quando chegou lá era um baile.

Francisca segue dizendo como está sendo importante poder estar falando e sendo escutada, e diz: “Quando eu chequei aqui era como se eu estivesse num poço bem fundo, cheio de água sem saber nadar. Agora não, eu estou me sentindo bem melhor, e podendo me abrir para fazer coisas que eu nem imaginava que iria fazer na vida”.

Deste modo, podemos perceber que as questões do sujeito e os efeitos da escuta são sempre singulares, e que Francisca, a partir da fala, pôde re-situar algo de sua posição em relação à perda e a falta, fazendo uma leitura da sua história.

 

Referências Bibliográficas

CASTILHO, G. Sobre o trabalho de luto na experiência com idosos. In: Transfinitos. Número 5, v. 1. Colóquio A escrita na psicanálise. Aleph escola de psicanálise, Ano 6. Editora Autêntica, 2007.

FREUD, S. Nossa atitude para com a morte. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XIV.

FREUD, S. Luto e melancolia (1915). Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XIV.

FREUD, S. Sobre a transitoriedade (1915) . Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XIV.

MUCIDA, A. O sujeito não envelhece – Psicanálise e velhice. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

 

Notas

* Trabalho realizado no NAI/UNATI, sob orientação de Gloria Castilho.

** Residente do segundo ano de Psicologia Clínico-Institucional - IP/HUPE/UER

1 Nome fictício.