ARTIGOS

 

 

A construção de uma intervenção possível: algumas questões suscitadas pela prática no Núcleo de Atenção ao Idoso (NAI/UNATI-UERJ)*

Renata Fidelis**

 

 


O Núcleo de Atenção ao Idoso (NAI) é uma unidade do Hospital \Universitário Pedro Ernesto (HUPE), vinculado à Universidade Aberta da Terceira Idade (UNATI) e à Sub-reitoria de Extensão e Cultura (SR-3), tendo como objetivo oferecer atenção integral à saúde do idoso. O atendimento é realizado por uma equipe multidisciplinar (geriatras, enfermeiros, assistentes sociais, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos, entre outros) que realiza um trabalho assistencial (atendimento ambulatorial) e um trabalho com enfoque na promoção de saúde (através de grupos de promoção de saúde). A equipe também presta assistência aos idosos internados nas enfermarias de clínica médica no HUPE, trabalho que está sendo reestruturado.

O objetivo deste trabalho é refletir sobre algumas situações onde a equipe apresenta dificuldades para intervir. Isto ocorre em parte pela própria complexidade das questões que chegam ao serviço. São recebidos muitos idosos que apresentam uma frágil rede de suporte social, muitas vezes o serviço funcionando como tal para estes idosos. Algumas intervenções são pensadas pela equipe nos espaços de troca, como reuniões multidisciplinares, ou em encontros de profissionais nos corredores do ambulatório. 

Destaca-se uma intervenção mais particular de acordo com a especificidade de cada saber, mas há um esforço na construção de uma direção de conduta que possa ser realizada através da interlocução entre estes saberes. Trabalha-se na perspectiva interdisciplinar de que se produza algo a partir do diálogo entre os diferentes discursos.

Diante disto cabem algumas questões: como o psicólogo, atravessado pelo discurso psicanalítico, se posiciona frente às diferentes demandas, da equipe e do paciente? Qual a contribuição do psicanalista ao trabalho em equipe?

De qual intervenção se trata?

No momento de se traçar uma conduta, muitas vezes a equipe percebe uma distância entre aquilo que se pretende fazer e aquilo que se consegue fazer. Quando não se consegue fazer aquilo que se pretende, a equipe é dominada por um sentimento de impotência, caracterizando sua conduta como falha, desconhecendo os limites da própria situação, ou os limites daquele sujeito a quem se pretende ajudar. Passemos à análise de algumas situações para exemplificar como isto acontece.

A equipe que atua na enfermaria ficou bastante mobilizada quando um paciente, com um quadro de câncer, classificado como fora de possibilidades terapêuticas, começou a solicitar sua ida para casa. Parte da família estava insegura em atender a este pedido, pois apesar de poder financeiramente montar uma estrutura de home-care, não estava em condições emocionais de recebê-lo em casa e assistir à sua morte sem poder fazer nada, como disse o filho. A esposa mostrava-se disposta a levá-lo, mas não sustentava esta posição, já que o filho mais velho era quem tomava as decisões. Nos atendimentos, ela dizia que estava muito difícil ver o companheiro de muitos anos sofrendo daquela forma e sentia-se impotente frente a esta situação. Após alguns atendimentos, ela demonstrou estar sendo excessivo para ela as abordagens da equipe e se despediu de mim, agradecendo e dizendo que se precisasse me chamava. Era o momento em que a equipe estava investindo em reunir a família para dar um suporte para que eles pudessem atender ao pedido do paciente. Achei importante não insistir em abordá-la, já que ela estava sinalizando que estava se sentindo cobrada pela equipe por uma decisão que ela não podia tomar. Coloquei-me então disponível, estando por perto para quando ela me solicitasse. Então um dia ela e o filho vieram me perguntar se eu não podia atuar junto à equipe solicitando que o paciente fosse sedado. Ficou claro que para ambos estava sendo difícil ver o paciente consciente e sentindo dor. Não foi possível atender a este pedido, mas foi possível acolher isto que para eles estava sendo insuportável.

Neste caso podemos observar o quanto uma situação de tamanha gravidade mobiliza tanto a família quanto a equipe. Em ambos os lados predominava o discurso de não poder fazer nada, da impotência. A equipe, enquanto o caracterizava como fora de possibilidades terapêuticas, e a família, que não suportava assistir ao sofrimento dele tanto no hospital, como em casa. Diante do ideal de atender ao pedido do paciente, já que ele se encontrava lúcido, a equipe acabou ocupando para a família um lugar muito impositivo. O esforço da psicologia era inserir a complexidade da situação, pois embora o paciente estivesse lúcido e devêssemos considerar o seu pedido, havia uma família que não estava de acordo quanto ao que era melhor a ser feito. Parte da equipe parecia não ouvir as dificuldades da família, as implicações deste pedido do paciente, só se importando em responder sua demanda. Nesta atitude poderia estar envolvida a dificuldade da equipe em manter o paciente ali, em lidar com o sentimento de impotência. O que era possível de ser feito era acompanhar a família na tomada de decisão, acolher suas dificuldades, estando por perto para alguma solicitação.

No ambulatório, a equipe também vivencia situações em que diante da complexidade, parece não haver nada a fazer. Muitas vezes o nada a fazer é uma forma de vivenciar a dificuldade do lado da impotência. Entretanto, ocupar um lugar de referência ao qual o sujeito possa recorrer, muitas vezes, é o trabalho possível. Como exemplo, penso em uma paciente que é acompanhada há um tempo no serviço, mas a equipe se queixa de que ela não adere ao tratamento, falta a muitas consultas e não dá continuidade aos encaminhamentos. Embora a equipe pensasse que não estava fazendo nada, a paciente localizava a importância do serviço na sua vida. Disse inclusive ter recusado uma proposta de morar com uma sobrinha em São Paulo para não ficar distante da equipe, das atividades que estava fazendo (ela participa de um grupo de promoção de saúde e do projeto de voluntariado).

Esta paciente chega ao atendimento da psicologia localizando uma mudança em sua vida a partir da morte da irmã, que estava sempre com ela, sua “companheira” (sic). Esta perda a desorientou, disse que ficou perdida. Após a perda, algo de uma unidade, que é sempre imaginária, se desfaz, provocando uma desestabilização do sujeito. A aposta da psicanálise é que a elaboração no trabalho de luto possibilita que se re-situe o campo narcísico. O desafio era o de convocar na clínica o trabalho de luto, que requer e implica tempo.

“É tentando responder aos ideais que prescrevem uma relação asséptica com a dor que muitas vezes um idoso encurta a conversa. Não há muito o que falar porque o que há para falar requer uma escuta que lhe permita alguma leitura a partir de suas perdas.” (Castilho, p. 174, 2007)

É possível que a dificuldade desta paciente em seguir as orientações da equipe fosse devido a sua necessidade de passar por um trabalho de luto, o que demanda tempo e uma escuta que localize isto. Perdas importantes podem abrir um trabalho de luto, que sendo elaborado possibilita que o sujeito possa investir em outras coisas.

Há uma diferença entre uma intervenção analítica e uma intervenção médica. São baseadas em discursos diferentes, lógicas diferentes.

“...condicionada pelo discurso da ciência, a medicina foraclui de seu âmbito, a dimensão do sujeito por lidar com um real que não é o mesmo real da psicanálise. Enquanto para esta o real em jogo é relativo à castração e a falta do Outro, o real para ciência é tudo aquilo que ainda não foi simbolizado por seu discurso.”(Quinet, p. 28,1999)

 A psicanálise parte da premissa de que há algo que escapa ao sujeito, há um saber não todo, há uma cena onde o eu não é senhor em sua própria casa (Freud, 1915). A intervenção médica parte do princípio de que há algo que tem que ser feito para o bem do sujeito. Não há espaço para o desejo, para algo que não esteja comprometido com uma lógica do bem comum, algo que é singular. Lacan (1997[1959-60]) diz que o desejo do analista é um não-desejo de cura, ou seja, trabalha-se no sentido de sustentar as questões referidas ao campo do desejo. Trabalha-se com o “princípio de abstinência”, como aponta Freud (1987 [1918]): o analista não deve responder a demanda do paciente, como condição de sustentar um trabalho pela fala. O discurso analítico considera a importância de um tempo de contato com o sujeito para que se possa intervir, para que se possa ocupar um lugar para ele. Em “Sobre o início do tratamento”, Freud traz a observação de que o analista só deve começar a fazer comunicações ao paciente quando a transferência estiver estabelecida, ou seja, quando se tornar uma transferência operativa. O analista passa a ser investido de um lugar transferencial, com o analisando lhe conferindo um lugar de “sujeito suposto saber”1. É deste lugar que o analista vai poder operar a direção do tratamento, que visa, tendo como referência a ética analítica, a tomada, por parte do analisando, de sua palavra, de um bem-dizer sobre seu sintoma.

Acolher a demanda X responder a demanda?

É importante destacarmos a diferença entre demanda e desejo. Quando alguém demanda alguma coisa, isto não é idêntico e muitas vezes é até oposto àquilo que ele deseja. Existe um desejo porque existe algo do inconsciente que escapa ao sujeito, há sempre no nível da linguagem alguma coisa que está além da consciência. O analista deve acolher sem ceder às demandas do sujeito (Figueiredo, 1997).

Para se entender o conceito de desejo, recorramos a experiência de satisfação formulada por Freud. O primeiro encontro do sujeito com o Outro está marcado pela urgência da necessidade, há um aumento da tensão e uma exigência de descarga da excitação, que exige uma satisfação. A criança não tem condições para realizar uma ação que responda a este fim. A mãe, que é chamada a ocupar o lugar do Outro, vai satisfazer ou privar a satisfação. Como paradigma do desejo, temos o movimento de repetir o contorno de uma satisfação pela via da alucinação. Os traços investidos à época da experiência de satisfação são reinvestidos com o reaparecimento do estado de urgência ou de desejo. “É provável que a imagem mnêmica do objeto será a primeira a ser afetada pela ativação do desejo.” (Freud, (1987 [1895])

“O desejo, errático e indestrutível, consiste na repetição, sempre renovada e impossível, de uma satisfação. Não há objeto que possa satisfazer o desejo. E a falta originária de objeto, é que perpetua e eterniza o desejo inconsciente.”(Vidal, p.133, 1984).

Neste sentido, o campo da demanda está sempre aquém do campo do desejo, sendo algo da ordem da estrutura do aparelho psíquico.

Trabalhamos com um corpo que não é somente orgânico, mas atravessado pela linguagem, erogeneizado através da relação com o Outro. Daí que podemos pensar na dimensão de gozo, que é algo que é experimentado como da ordem da tensão. Para a angústia, em sua dimensão de excesso de gozo que retorna sobre o sujeito, não há remédio, só dá para ser considerada pela via do desejo.

Uma função do psicanalista seria de (re)introduzir esta dimensão na lógica que se esforça por excluí-la. Atuando junto a uma equipe de saúde devemos trabalhar nesta direção. Não é tarefa fácil, pois como Lacan (2001[1966]) nos mostra, o lugar que a psicanálise ocupa na medicina é extra-territorial e marginal. É marginal, pois é vista como uma ajuda exterior, quando o saber médico não dá conta de alguma questão, incluindo aquilo que é excluído no discurso científico: a dimensão subjetiva. É extra-territorial por conta de se tratar de um outro discurso, atuando a partir de uma outra lógica.

O analista deve saber conviver em meio à diferença de discursos, do lugar de uma especificidade e não de uma especialidade. O analista inserido em uma instituição deve acolher as demandas e encaminhamentos a ele dirigidos, mas sem ceder de sua especificidade. É importante que o analista não se retire do campo de ação no trabalho em equipe, mas que também não responda as demandas do mesmo lugar das outras especialidades (Figueiredo, 1997). Acreditamos que estar inserido em uma equipe de saúde produz efeitos, a cada vez, no sentido da inclusão da subjetividade e dos limites inerentes a qualquer saber.

 

Referências Bibliográficas

CASTILHO, G. Sobre o trabalho de luto na experiência com idosos. In: Transfinitos,nº 5, v. 1. Colóquio “A escrita na psicanálise”. Publicação Aleph escola de psicanálise, ano 6. Belo Horizonte. Ed. Autêntica, 2007, p. 171-177.

FIGUEIREDO, A. C. Vastas confusões e atendimentos imperfeitos: a clínica psicanalítica no ambulatório público. Rio de Janeiro: Relume – Dumará, 1997.

FREUD, S. [1895] Projeto para uma psicologia científica. In: Obras Completas, Vol. I, Rio de Janeiro, Imago, 1987, 2a. Ed.

________. [1913] Sobre o início do tratamento. In: Obras Completas, Vol. XII, Rio de Janeiro, Imago, 1969.

________. [1915] O inconsciente. In: Obras Completas, Vol. XIV, Rio de Janeiro, Imago, 1969.

________. [1918] Linhas de progresso na terapia psicanalítica. In: Obras Completas, Vol. XVII, Rio de Janeiro, Imago, 1976, 1a. Ed.

LACAN, J. [1959-60] O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1997.

________. [1960-1961] O Seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

________. [1966] O lugar da psicanálise na medicina. In: Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n.32, 2001, p. 8-14.

QUINET, A. As novas formas do sintoma em medicina. In: Agora, v. II, n. 2, jul/dez 1999, p. 27-35.

VIDAL, E. A questão do objeto no campo freudiano. In: Birman, J.; Miceás, C. A. (org.) O objeto na teoria e na prática psicanalítica. Rio de Janeiro. Ed. Campus, p. 128-141, 1984.

 

 

Notas

* Trabalho realizado sob a orientação da psicóloga Glória Castilho.

**Residente do segundo ano do Curso de Especialização em Psicologia Clínico-Institucional, modalidade Residência Hospitalar.

1 Para melhor compreensão desse conceito, ver: LACAN, J. [1960-1961] O Seminário, livro 8: a transferência.