ARTIGOS

 

 

Breve relato sobre a escuta psicanalítica na clínica com idosos:reintroduzindo a dimensão subjetiva na depressão*

Cristiane Bueno Iatauro**

 

 


O ambulatório do Núcleo de Atenção ao Idoso (NAI) é formado por profissionais de diferentes categorias, tais como odontologia, medicina, enfermagem, psicologia, nutrição, fisioterapia, serviço social e fonoaudiologia, que atuam dentro de uma perspectiva de ação integral à saúde do idoso, visando, principalmente, à produção de conhecimento sobre o envelhecimento, com enfoque no cuidado e na promoção da saúde.

Neste contexto, os pacientes chegam à equipe de psicologia através de pedidos de parecer feitos pelos profissionais das diferentes especialidades do ambulatório quando estes detectam alguma questão que julgam poder ser encaminhada pela psicologia. Devido à predominância de um discurso prioritariamente científico, é comum recebermos casos de pacientes diagnosticados pelos médicos como: “depressão maior, síndrome de ansiedade ou síndrome demencial”.

A depressão, no discurso da ciência, é pensada muitas vezes como um déficit, como um defeito em relação à saúde (devendo ser corrigido através da medicação) ou como uma falta no imperativo obscuro de otimismo e felicidade que a nossa sociedade sustenta (Soler, 1999:95). A clínica da psicanálise, em contrapartida, nos mostra que “a depressão”, no singular, isolada como uma entidade própria, simplesmente não existe, existem apenas estados depressivos que adquirem diferentes significações nas histórias singulares de cada sujeito (idem). Portanto, os fenômenos depressivos podem ser tratados como um sintoma analítico quando há implicação do sujeito com aquilo que ele sofre.   

Freud, em Inibição, Sintoma e Angústia, refere-se à depressão como um estado ao aproximá-la de um quadro de inibição generalizada que acontece quando o eu do sujeito se vê envolvido em uma tarefa psíquica particularmente difícil, como acontece no trabalho de luto (Freud,1926:94).

  Sendo assim, a proposta que norteia nossa escuta clínica é tentar reintroduzir, na questão da depressão, o que diz respeito ao sujeito. Trabalho que pode se dar somente no um a um de cada caso, através dos ditos de cada paciente em análise.

O trabalho da escuta visa desconstruir alguns significantes aos quais o sujeito se aliena, como por exemplo, “a depressão”, “o pânico”, para que ele possa situar-se através daqueles significantes que respondem singularmente ao seu mal-estar.

Maria1, 69 anos, é encaminhada à psicologia pelo médico com o seguinte pedido: “paciente com depressão + ansiedade em uso de antidepressivo. Critérios para depressão maior. Poderá beneficiar-se de psicoterapia” (sic).

Em sua primeira entrevista com a psicóloga, a paciente chega intitulando-se como “deprimida” (sic) e diz estar sentindo-se muito “cansada” (sic) devido aos remédios que vem tomando. Fala que eles deixam-na “tonta” (sic). Depois de indagada sobre o momento a partir do qual vem sentindo-se deprimida, Maria responde: “desde que meu marido perdeu o emprego e nossa vida foi para o fundo do poço” (sic). Relata, chorando, que ela e o marido tiveram uma queda brusca na situação financeira quando o último, que era advogado já aposentado do metrô, teve sua aposentadoria suspensa por medida adotada pelo governo da época. Diz estarem “cheios de dívidas” (sic) e com “agiotas atrás deles” (sic), pois o aluguel do apartamento onde moram está muito atrasado.

Além desta perda da situação financeira, que ocorreu há 17 anos, Maria relata nesta primeira entrevista uma série de outras perdas que sofreu ao longo de sua vida. Conta que “é sozinha” (sic), não tem nenhum familiar por perto. Seus pais já faleceram. Tem apenas uma irmã, mas devido a um desentendimento elas não se falam há 10 anos. Chora ao dizer que a irmã é “má e egoísta” (sic). Conta também que, há 15 anos, “teve que tirar” (sic) um seio devido a um câncer. E acrescenta dizendo: “ainda tem meu cachorro Mike2 que morreu faz três meses” (sic). “Isto para mim foi uma morte” (sic). Chora muito e diz: “minha vida é só sofrimento” (sic). “Tem dias que não tenho vontade de levantar da cama. Só choro e durmo” (sic).  

A clínica nos mostra que escutar um idoso não é fácil. A queixa destes sujeitos em análise, como nos aponta Castilho (2007), muitas vezes gira em torno das inúmeras perdas significativas a que o processo de envelhecimento os confronta. Como enfrentar a radicalidade deste sofrimento? Como fazer falar um deprimido? Como causar uma movimentação nestes momentos em que o sujeito está tão tomado por seu sofrimento, a ponto de desinteressar-se pelas coisas do mundo que o cerca? (Freud, 1914). Estas são questões que permeiam nossa prática na clínica com idosos.

Freud, em Luto e Melancolia, afirma que a perda de um ente querido ou alguma abstração que tenha ocupado o lugar de um ente querido (como o país, a liberdade ou algum ideal) convoca o sujeito ao trabalho psíquico do luto, trabalho que é executado pouco a pouco, com grande dispêndio de tempo e energia, através do qual “cada uma das lembranças e expectativas em relação ao objeto perdido é evocada e hipercatexizada, e o desligamento da libido se realiza em relação a cada uma delas” (Freud, 1915:251). Ao final do luto, o ego encontra-se outra vez “livre e desinibido” (idem), podendo o sujeito investir em novos objetos e fazer novas escolhas, re-situando, assim, algo do seu desejo e do seu campo narcísico.

No mesmo artigo, Freud sinaliza que quando não acontece o trabalho de luto simbolizando a perda, isso terá conseqüências para o sujeito, deixando a entender que lutos não elaborados podem levar a depressão. O autor usa o termo depressão para falar de um “luto patológico” (Freud, 1915:256), o que nos leva a pensar que na depressão tratar-se-ia de um luto congelado, eternizado, pela falta de trabalho de elaboração (Jimenez, 1997).

Na depressão, ao contrário do luto, o sujeito esquiva-se da fala e não quer se referenciar na perda, o que o levaria a reconhecer-se como sujeito faltoso e o remeteria à castração (idem). A aposta do trabalho analítico, que tem como lei ética o bem dizer, a fala, é que o sujeito possa transformar a depressão em luto, ou seja, possa realizar o trabalho de elaboração das suas perdas, trabalho realizado por meio de significantes.

No decorrer dos primeiros atendimentos de Maria, é recorrente a queixa de que “tem chorado muito” (sic) e que “não vê saída para as coisas em sua vida” (sic). Depois de indagada sobre em que momentos sente vontade de chorar, a paciente consegue localizar que, muitas vezes, chora ao se lembrar do cachorro, mas “em relação a isso não há nada a se fazer” (sic). Sinalizo que ela pode falar do cachorro nas sessões e que isso pode ajudá-la a lidar com esta situação de uma maneira menos sofrida, ao que ela responde, chorando, que “é muito difícil falar dele, que prefere não lembrar” (sic) e acrescenta que não consegue olhar para a fotografia do cachorro, acha que se fizesse isso “perderia um pedaço do seu coração” (sic), frase que remete à afirmação de Freud de que a perda de alguém amado é vivida pelo sujeito como uma perda no seu próprio eu (Freud, 1915). 

Durante um período de sessões muito difíceis, nas quais Maria chorava muito ao se lembrar do cachorro, ela termina uma destas sessões dizendo que eu era “um anjo e estava tendo muita paciência de escutá-la chorar” (sic). 

Aos poucos, Maria vai podendo falar um pouco mais sobre o cachorro e podendo situar sua perda. Relata que “Mike era seu verdadeiro amigo e quando ela estava triste ele percebia e vinha subir no sofá para lhe dar beijos” (sic).  “Ele faz muita falta, pois era como um filho” (sic). Conta que “às vezes, quando está em casa, chega a ouvir o barulho das patinhas dele” (sic). Relata que ele sofreu um grave problema na coluna e teve que ser sacrificado. Diz que algumas pessoas lhe falam para ela comprar outro cachorro, mas ela não pode mais, pois “com esta idade tenho medo de morrer e deixar o bichinho órfão” (sic).

A idéia de uma possível proximidade da morte que, muitas vezes, vemos operar na fala de um idoso como um limite que remete à impossibilidade de imortalidade, pode traduzir-se de uma maneira negativa, apontando para uma diminuição do valor da vida. Porém, como nos indica Freud em seu belo artigo “Sobre a transitoriedade” (1915), o enlace da finitude com as questões do desejo pode tornar urgente a fruição e um balanço da vida que resta. Essa é nossa aposta maior na clínica ao convocar um idoso a trabalhar a partir de suas perdas (Castilho, 2007).

 No decorrer de seus atendimentos, Maria vai, aos poucos, ressituando sua história. Inicia uma sessão contando, com pesar, sobre a perda de umas jóias e uns objetos pessoais, como um “faqueiro de prata novinho” (sic) que teve que penhorar. Em seguida diz: “mas isso não é nada, não ligo para essas coisas materiais. Minha pior tristeza são as separações, do meu cachorro, minha irmã, minhas sobrinhas” (sic).   Maria explica que “foi uma coisa atrás da outra em sua vida” (sic), perdeu mãe, pai, seu marido perdeu o emprego e ela não fala mais com a irmã há um tempão” (sic).  Chora e diz: “a família é muito importante doutora Cristiane, é como uma mesa com quatro pernas” (sic). Explica que uma perna era sua mãe (“que já se quebrou”), a outra era seu pai, a terceira sua irmã (“que também já se quebraram”) e “agora resta apenas o meu marido” (sic). Fala: “Deus está me tirando tudo que eu gosto, é muita coisa para cima de mim”(sic).

Quinet (1999), ao tentar situar o afeto de dor presente na depressão, cita o artigo freudiano de 1926 sinalizando que uma intensa excitação dolorosa acomete o sujeito a cada perda pela qual é confrontado nos diferentes momentos de sua vida:

“Parece perfeitamente normal que aos quatro anos de idade uma menina chore penosamente se sua boneca se quebrar, ou aos 16 se ela for desprezada pelo namorado, ou aos 25, talvez, se um filho dela morrer. Cada um destes determinantes da dor tem sua própria época e cada um desaparece quando esta época termina. Somente os determinantes finais e definitivos permanecem por toda a vida. Devemos julgar estranho se essa mesma menina, depois de ter crescido, fosse chorar por algum objeto sem valor que tivesse sido danificado. Contudo é exatamente assim que se comporta um neurótico” (Freud, 1926, apud Quinet, 1999).

As diferentes perdas seriam dolorosas para o sujeito por remeterem todas aos “determinantes finais e definitivos”, à castração. O autor conclui que “a perda daquilo que escamoteava a castração” (Quinet, 1999:90) é o que pode desencadear no sujeito a dor, o luto, a depressão ou a melancolia. No caso da depressão, o afeto presente é a “dor constitutiva da castração que, em vez de aparecer como angústia, deixa triste o sujeito com a nostalgia do ideal” (idem).

 Perguntamo-nos se no caso dos idosos, por ser comum o confronto com uma série de perdas ao longo de sua existência, poderia haver uma exacerbação deste aspecto. No caso de Maria, pensamos que uma perda mais recente – a do cachorro – pode ter trazido à tona sentimentos muito dolorosos de lutos passados não elaborados. Para sair da dor, portanto, há que se fazer o luto daquilo que se perdeu.

No decorrer de seus atendimentos, Maria tem dado indícios de que está trabalhando para fazer o luto de suas perdas. Tem falado bastante sobre o cachorro e chegou a trazer as fotos dele para eu ver. Situa que “quando olha para o lugar onde ficava a comida dele dá um vazio muito grande, fica só um vazio” (sic). Enfatiza que o fato de ele ter sido sacrificado foi muito difícil, mas foi o melhor a ser feito na época, pois ele estava sentindo muita dor devido ao seu problema na coluna.

Reconhece estar chorando menos e intitula-se não mais como deprimida, mas como uma pessoa “muito sensível e muito emotiva que compra o problema dos outros como se fossem seus” (sic). Emenda dizendo: “por isso eu oscilo, tem momentos em que estou melhor, e momentos em que estou mais triste” (sic). Diz também que: “demora muito a cair as fichas para ela” (sic). Explica citando o episódio da morte da mãe diante do qual, num primeiro momento, parecia ter encarado bem ao pensar que ela já estava doente, mas, “depois de um tempo, a ficha caiu e eu sofri muito” (sic). Conclui dizendo que “não sabe se é assim sensível porque custa a aceitar as coisas, custa a acreditar” (sic).

Maria tem também tido lembranças e sonhos com a mãe. Relata um sonho no qual se aproxima da mãe que estava deitada para lhe dar um beijo, e quando a toca na face surpreende-se com o fato dela estar “gelada” (sic), fato que a faz concretizar a morte da mãe.

Em atendimentos recentes, a paciente tem podido introduzir outras questões como, por exemplo, o relacionamento com o marido. Refere-se ao último como “estragado”, “descontrolado” (sic), pois ele perde tudo, estraga as coisas da casa e não é como ela que é uma pessoa muito “cuidadosa” (sic). Fala que o casamento não é uma coisa simples, que “a gente tem que ceder para viver junto” (sic).

O sujeito triste tem medo de saber de seu desejo, o que o leva muitas vezes ao ponto de não querer desejar, fato que Lacan aponta ao definir a depressão como uma covardia moral. Oferecendo um tratamento “pela via do desejo, a psicanálise pode tornar possível ao sujeito o caminho que parte da dor de existir e segue em direção a alegria de viver” (Quinet, 1999:89).

Assim, ao recebermos um paciente em tratamento analítico, nossa aposta é que, através da fala, algo do seu sofrimento possa ser passível de ter uma outra direção, que não a depressão ou uma angústia paralisante. Haver-se de uma forma mais implicada frente às questões concernentes ao seu desejo é uma escolha ética que cada sujeito terá a chance de fazer no percurso de sua análise. 

 

Referências Bibliográficas

Castilho, G. Sobre o trabalho de luto na experiência com idosos. In: Transfinitos n. 5, vol.1. Colóquio: A escrita na psicanálise. Publicação Aleph escola de psicanálise, ano 6. Ed. Autêntica, 2007.

Freud, S. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). In: Edições Standard Brasileira das obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV, Rio de Janeiro: Imago, 1996.

________. Luto e Melancolia (1915). In: Edições Standard Brasileira das obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV, Rio de Janeiro: Imago, 1996.

________. Sobre a transitoriedade (1915). In: Edições Standard Brasileira das obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV, Rio de Janeiro: Imago, 1996.

________. Inibição, Sintoma e Angústia (1926). In: Edições Standard Brasileira das obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XX, Rio de Janeiro: Imago, 1996.

Jimenez, S. Depressão e melancolia. In: A dor de existir e suas formas clínicas: tristeza, depressão e melancolia. Kalimeros, EBP, Rio de Janeiro: Contra Capa, 1997.

Quinet, A. Atualidade da depressão e a dor de existir. In: Extravios do desejo: depressão e melancolia. Editora Rios Sinuosos/Contra Capa, 1999.

Soler, C. Um mais de melancolia. In: Extravios do desejo: depressão e melancolia. Editora Rios Sinuosos/Contra Capa, 1999.

 

 

Notas

* Trabalho desenvolvido no ambulatório do Núcleo de Atenção ao Idoso NAI/UnATI/UERJ no ano de 2008. Supervisora: Glória Castilho.

**  Residente do segundo ano de Psicologia Clínico – Institucional do IP/HUPE/UERJ.

1 Nome fictício.

2 Nome fictício.