ARTIGOS

 

 

Elaborando a Morte Através do Brincar*

Fernanda Viana M. de Azevedo**

 

 


INTRODUÇÃO

Neste trabalho abordarei recortes de um caso clínico que venho acompanhando há um ano no ambulatório de pediatria do HUPE. Minha intenção é propor uma reflexão sobre a função do brincar na subjetividade de uma criança, que desde o nascimento assistiu ao adoecimento de seu pai, que veio a falecer, quando o filho estava prestes a completar cinco anos.

DESENVOLVIMENTO

Pedro foi encaminhado ao Setor de Psicologia pelo pediatra, que o acompanhava a pedido de Andréa, sua mãe, que observava comportamentos agressivos no menino, antes incomuns. A criança perdeu o pai, João, dois meses antes de ter sido feito o encaminhamento.  No entanto, Andréa ainda não havia contado ao filho sobre o falecimento de seu pai. A criança acreditava que João estava internado no hospital.

Na primeira entrevista com Andréa fui informada sobre a mudança no comportamento da criança e do fato de que a mãe relutava em contar ao filho sobre a morte do pai. Ela acreditava que seria um golpe muito duro para o menino, que desde o nascimento via o pai fragilizado pelo adoecimento.

Andréa se mostrava preocupada com o filho, pois até o falecimento do marido, viu-se absorvida nos cuidados com este, que precisava de atenção contínua, o que não a permitia dedicar-se ao filho como gostaria. Quando Pedro era ainda recém-nascido, Andréa se viu envolvida com a necessidade de acompanhar o marido em uma de suas internações, enquanto o menino ficava sob cuidados de tias, que se revezavam.

Sabemos que na fase inicial da vida do bebê, espera-se que a mãe possa identificar-se com a criança, para que assim consiga corresponder às suas necessidades mais apropriadamente, o que corresponde à preocupação materna primária, como apresenta Winnicott (2000). Com o adoecimento do pai e o afastamento da mãe, Pedro pode ter sofrido em sua fase primitiva do desenvolvimento um nível maior de frustração. No entanto, não nos era possível conhecer o quanto sua maturação emocional pode ter sofrido perdas. Sabíamos apenas que o espaço transferencial poderia constituir-se como um meio acolhedor e reparador naquelas circunstâncias de sua vida.

Procurei mostrar à mãe que compreendia sua intenção de preservar o filho do sofrimento. Porém, busquei sinalizar que a criança necessitava encontrar meios de fazer face ao luto do pai e que isso somente seria possível se soubesse da verdade. Andréa temia a reação do filho, pois seu marido havia adoecido durante a gestação de Pedro, em função de uma severa intoxicação que sofrera no trabalho. Desde então, todo o contato do pai com o menino foi permeado pela fragilidade que a doença impunha àquele, que permaneceu afastado do trabalho, acamado em casa e, em algumas circunstâncias, internado.

Após um mês de atendimento, Pedro chegou para mais uma sessão contando que já sabia que seu pai tinha mesmo virado uma estrelinha, e que sua mãe havia lhe contado que ele estava sofrendo muito no hospital e, por isso, papai do céu o levou para morar lá em cima (sic). Contou que sabia que de onde o pai estava protegeria a ele e a sua irmã. Disse que já achava que o pai tinha virado uma estrela, pois tinha ido para o hospital há muito tempo e não mais voltava.

Quando Andréa pode compreender a necessidade do filho de saber o que tinha se passado com o pai, permitiu à criança que não se sentisse mais isolada em seus sentimentos e fantasias de perda. Finalmente a mãe entendeu a importância de poder falar da morte, permitindo ao filho colocar-se em contato com sentimentos relacionados com a perda e a separação.

Nos atendimentos, o brincar, para Pedro, funcionava como um meio de viver o luto da perda do pai, pois Winnicott (1971) nos diz que é entre brinquedos no chão, que a criança pode comunicar seus pensamentos, impulsos e sensações, que mesmo sem uma conexão aparente, revelam o “[...] brincar como uma experiência, sempre uma experiência criativa, uma experiência na continuidade espaço-tempo, uma forma básica de viver” (Winnicott, 1971, p.75).

Certo dia pediu-me que o ajudasse a escrever uma carta para o pai, já que não sabia como fazê-lo. Disse que o achava capaz de escrever e que poderia mostrar como fazer as letras.Perguntou se achava que o Correio poderia levar a carta até o Céu, acrescentando que acreditava que Papai do Céu podia ajudar nisso. Disse que então começássemos a escrever o que desejava dizer ao pai. Nesse momento, contou-me que um dia foi à Igreja e pediu para que papai do céu não deixasse seu pai morrer, e que mesmo assim ele havia morrido, e então entendeu que nem tudo que pedimos é atendido. Ao fazer a mensagem queria dizer que achava o pai o melhor; mas corrigiu-se dizendo que ele era o melhor do mundo e do universo. Ao concluir a carta, beijou-a várias vezes afirmando que não deixaria ninguém vê-la. Fez um envelope, onde quis escrever: para papai João, dizendo que ia pedir à mãe que colocasse no Correio.

Segundo Winnicott (1971), o espaço terapêutico vem permitir a manifestação da capacidade de ser criativo do paciente, e no caso de Pedro, veio auxiliá-lo na compreensão de que nem tudo que se deseja é possível de ser realizado, inclusive impedir a morte do pai. Assim, a seu tempo, pode aos poucos, encontrar meios de lidar com o choque causado pela perda de sua onipotência e o reconhecimento de um mundo que está fora de seu controle mágico.

Em seu desejo de transmitir ao pai o que sentia, através do brincar, fez-nos pensar também no lugar que o fenômeno transicional tem na experiência humana e que não pode ser contestado, pois pertence ao campo da ilusão: “este campo intermediário da experiência, cuja pertença, quer à realidade interior, quer à realidade exterior (e partilhada), ela não tem que justificar, constitui a parte mais importante da vivência infantil”, conforme assinala Winnicott, apud Laplanche e Pontalis (1967, p. 415).

O paciente certa vez, contou-me que fez algumas perguntas à mãe sobre a morte do pai e que ela havia dito que este começou a adoecer antes de seu nascimento e que tinha se esforçado muito para melhorar de saúde, pois ele não queria morrer, mas que de fato, como estava sofrendo muito, papai do céu achou melhor levá-lo. Então, perguntou à mãe se ela também ia morrer, ao que esta respondeu que isto aconteceria quando estivesse bem velhinha e que nesta época ele já seria um homem, casado e com seus filhos.

Pedro afirmava que cresceria e ficaria bonito e forte como seu pai e que sua mãe tinha lhe dito que se parecia muito com ele. Nesse momento, perguntou-me se achava que ele poderia morrer, caso ficasse mesmo parecido com o pai. Disse que, apesar de suas semelhanças, não significava que também ficaria doente e morreria do mesmo modo como se deu com o pai. Mostrei-lhe que nem tudo que acontecia aos pais deveria se repetir com os filhos, dizendo que sua história poderia ser muito diferente.

Na mesma sessão, o menino quis brincar de fazer compras e começou a desenhar o que se poderia encontrar no Supermercado. Mostrei a ele que tudo aquilo servia para que ficasse forte e com saúde. Perguntando então o que mais precisávamos comprar para que pudesse sentir-se bem alimentado. Diante de seu silêncio, respondi que achava que toda criança, além de comida, precisava de amor, ao que ele acrescentou: ah tia, criança também precisa de carinho. Pergunto: o que mais? Ao que respondeu, criança também precisa de imaginação e muita brincadeira. Ao despedir-se, Pedro disse que cresceria e ficaria bonito como o pai.

As últimas falas da criança permitem-nos compreender como foi importante que Andréa tenha explicado ao filho o porquê da morte paterna, pois permitiu ao menino que inclusive pudesse pensar, à sua maneira, sobre a questão da finitude. Isso não o impediu de identificar-se com João, nem mesmo de idealizá-lo. Como nos apresenta Laplanche e Pontalis (1967) “A identificação com o objeto idealizado contribui para a formação e para o enriquecimento das chamadas instâncias ideais da pessoa (ego ideal, ideal do ego)”. (p. 291). Pedro inicialmente temia identificar-se com o pai, que acaba morrendo, no entanto introjeta o que havia de bom desse pai, pois como nos diz Freud apud Laplanche e Pontalis (1967) “[...] o ego-prazer originário quer [...] introjectar em si tudo o que é bom e rejeitar tudo o que é mau” (p. 324).

Recentemente Pedro propôs que desenhássemos peixes, como alguns que estavam expostos no mural da sala. Em um de seus desenhos fez um tubarão, com divisões em seu interior, que dizia serem partes de uma casa. Em uma dessas divisões fez uma pessoa sentada com uma xícara nas mãos, e disse que aquele era seu pai tomando chá. Meu pai está dentro do tubarão conhecendo o mar, lá é como se fosse sua casa.

A criança tenta entender, através de sua vida de fantasia, o que terá acontecido com o pai após sua morte, o que nos remete a Freud apud Laplanche e Pontalis (1967) quando nos fala que o mundo interior, busca satisfação pela ilusão, contrapondo-se ao mundo exterior, que progressivamente impõe ao indivíduo, o princípio de realidade.

No espaço terapêutico, a seu modo, Pedro pôde dar lugar a dor que experimentava com a perda do pai e às outras questões envolvidas, integrantes de sua subjetividade. Desse modo, acreditamos que seu desenvolvimento emocional, que vinha sofrendo algum nível de prejuízo desde o nascimento, em função de experiências como privação, desamor e o medo do abandono, pôde então prosseguir a partir dos novos suportes que o meio lhe ofereceu.

 

Referências Bibliográficas

LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

WINNICOTT, D.W.  Da pediatria à psicanálise. Obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000.

______________. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1971.

 

 

Notas

*Trabalho realizado no Ambulatório de Pediatria do HUPE, sob supervisão da Doutora Maria Luiza de Sá Bustamante e apresentado no XII Fórum de Residência em Psicologia Clínico-Intitucional, em setembro de 2008.

**Psicóloga, Residente do segundo ano do Programa de Residência em Psicologia Clínico-Institucional do IP/ HUPE/ UERJ.