ARTIGOS

 

 

Maternagem Institucional e Função Identitária*

Fernanda Viana Martins de Azevedo**

 

 


Neste trabalho proponho abordar um caso clínico que venho acompanhando há cerca de um ano em terapia familiar psicanalítica, junto a uma equipe multidisciplinar, em ambulatório de psiquiatria de hospital universitário público. Deter-me-ei em um recorte do caso, a fim de desenvolver o tema a que me proponho.

Trata-se da história de Luiza, 25 anos, e seu empenho, já há alguns anos, na tentativa de exercer a sua função materna. Ela tem um filho de quatros anos, Rafael, e apesar do amor que demonstra sentir pela criança, apresenta dificuldades no exercício de sua maternidade, o que está estreitamente relacionado a sua história de vida, permeada desde muito cedo por situações de violência, abandono, privação, desamor e comprometimento importante da relação afetiva parental.

A proposta fundamental deste trabalho é buscar apresentar como uma instituição, neste caso um hospital-escola e público, com todos os seus percalços, pode constituir-se como um dos possíveis recursos viabilizadores de algum nível de maternagem para este sujeito.

Racamier entende o processo de maternagem como sendo, “o conjunto de cuidados prodigalizados ao infans neste clima de ternura activa, oblativa, atenta e constante, que caracteriza o sentimento maternal” (apud Laplanche e Pontalis 1983, p. 356), ou ainda que:

“A relação da maternagem nasce do encontro de um paciente profunda e vitalmente ávido de ser passivamente satisfeito por um terapeuta ao mesmo tempo apto a compreendê-lo e desejoso de se lhe dirigir como uma mãe a uma criancinha abandonada”. (Racamier apud Laplanche e Pontalis 1983, pg. 356).

Reconhecendo ser impossível substituir a mãe da paciente, podemos proporcionar-lhe um espaço acolhedor e gerador de segurança, onde ela possa sentir-se minimamente amparada. Vindo a construir recursos próprios, ela terá os meios para melhor compreender as necessidades de cuidado de seu filho, que, então se encontrava em lar abrigado em decorrência da desorganização psíquica que a mãe sofrera havia alguns meses, que a levara à internação psiquiátrica e ao conseqüente afastamento da criança. Observando os percalços que envolvem sua história, recordamos o que nos diz Kaës (1991):

“A instituição deve ser permanente: com isso ela assegura funções estáveis e necessárias à vida social e à vida psíquica. Para o psiquismo, a instituição encontra-se, como a mãe, na base dos movimentos de descontinuidade instaurado pelo jogo do ritmo pulsional e da satisfação. Ela se confunde com a experiência mesma da satisfação.” (Kaes, 1991, p. 42).

Luiza é filha de mãe com doença psiquiátrica desconhecida e de pai alcoolista, ambos falecidos durante sua adolescência. Referia um pai muito violento, que parecia incapaz de compreender as necessidades de proteção a ser dispensada aos filhos. Relata que o pai batia muito nos filhos e na mulher que, em função de seu adoecimento psíquico, se via totalmente incapaz de se defender bem como de protegê-los. Devido a situações recorrentes de violência, Luiza, aos seis anos, seguiu com seus irmãos para morar na rua, situação que perdurou até seus vinte anos, intercalada com períodos em que ficou abrigada. 

Apresenta a mãe como pessoa a quem amava e de quem sentia muita falta, especialmente após ter tido seu filho. Apesar disso, reconhece que a mãe se mostrava ineficiente na manutenção de cuidados mínimos com os filhos e, mesmo, em protegê-los. Disse lembrar-se dos carinhos dela e de suas tentativas de alimentar a ela e aos irmãos. O que acontecia, porém, era que sua doença a impedia que de fato pudesse cuidar deles. Relata que sua vida teria sido muito diferente se tivesse podido contar com sua presença e que, assim sendo, estariam vivendo juntas e ela certamente poderia lhe ensinar a cuidar melhor de Rafael.

Chamou-nos a atenção as representações que a paciente conservava da imagem materna, com quem manteve contato mais contínuo somente até seus seis anos aproximadamente. As idealizações e expectativas que ela apresenta em relação à mãe compõem com sua realidade psíquica e, portanto, têm função importante na constituição de sua subjetividade. Isto faz-nos lembrar Freud (1937), quando nos fala que a verdade pode ser sacrificada, dada a intolerância de nosso aparelho psíquico à percepção de uma realidade que acarrete desprazer. Podemos supor que, em sua vida de fantasia, Luiza deva ter acrescido à imagem materna qualidades que lhe permitiram tornar as recordações dessa mãe menos dolorosas.

Morava em casa própria, composta por um único cômodo, comprada por um de seus irmãos, com o qual não mantinha mais contato, pelo fato dele ter sido adotado e viver no exterior. Os outros dois irmãos, que teriam se envolvido com o tráfego de drogas, faleceram em circunstâncias desconhecidas. Assim sendo, sua referência de família limitava-se a uma tia, com quem não se relacionava bem, pois entendia que quando ela e os irmãos se viram obrigados a fugir de casa para afastarem-se da violência do pai, ela nada fizera para ajudá-los.

Seus laços inter-pessoais se apresentavam escassos e pouco duradouros, apesar da evidente ânsia por amizades e, especialmente, por constituir família, o que em algumas ocasiões a levava a envolver-se, precipitadamente, com homens que, posteriormente, compreenda não serem capazes de dar conta do que ela necessitava e buscava. Luiza sonhava em ter uma família com muitos filhos e um marido, concebido como bom companheiro e bom pai; dizia querer ter com a família que desejava constituir o que não pôde ter com seus pais e irmãos.

Apesar do empenho em conquistar vínculos afetivos, se mostrava desconfiada e mesmo hostil diante de uma atenção maior que lhe fosse dispensada, o que era notável na situação de tratamento. Mostrava-se um tanto surpresa diante de atitudes que demonstrassem preocupação e cuidado com questões delicadas de sua vida. 

Sabemos que foram inúmeras as experiências em que se viu passada para trás, mal tratada e humilhada. Ao longo de sua existência, suas relações mostraram-se continuamente comprometidas e insuficientes, principalmente em seus contatos afetivos mais primitivos, associados a perigos, violência e abandono. Conforme assinala Klein (1975), as relações que estabelecemos ao longo da vida são afetadas por experiências emocionais mais primitivas e pelos ajustamentos que as acompanham. Assim, para Luiza, pode tornar-se ameaçador o estabelecimento de vínculos afetivos, que em alguma medida estão associados à violência e à possibilidade de privação. Entendemos que nela, certamente, existem profundas necessidades de segurança e proteção contra os riscos intoleráveis de experiências de privação, insegurança e agressão.

Durante o período em que Luiza vinha sendo acompanhada, principalmente durante sua internação, durante a qual particularmente se apresentava regredida e com comportamentos muito infantilizados, foi-nos possível estar em contato com um sujeito profundamente demandante de vínculos, cuidados e proteção, mas igualmente marcado pela agressividade e hostilidade. Esta situação nos permitiu compreender o quanto à paciente parecia ser importante estabelecer conosco, enquanto equipe que se propunha cuidadora, relações de amor e rivalidade, como aquelas que estabelecera em suas relações objetais mais primitivas, que são essenciais para a constituição de algum nível de identificação, conforme assinala Freud apud Laplanche e Pontalis (1967). Segundo Winnicott:

(...) a criança carente busca o objeto de amor do qual se sentiu desapossada e manifesta  aos seus interlocutores a esperança de o reencontrar. Com isso ela faz com que aqueles que lhe estão à volta sintam a sua exigência e tende a colocar o adulto, a quem comove, numa posição muito particular de mãe arcaica totalmente devotada. (Winnicott apud Fustier, 1991, pg.139).

Acreditamos que, enquanto membros atuantes da instituição na qual Luiza é acompanhada, podemos funcionar como um espaço de formação intermediária que, como define Kaës (1991), existe “entre o espaço psíquico do sujeito singular e o espaço psíquico constituído pelo seu agrupamento na instituição” (Kaës, 1991, pg.33). Esta formação pertence à construção de sua relação desenvolvida com a equipe terapêutica, à qual pode ser atribuída uma função continente, que viabiliza o estabelecimento de relações de reciprocidade, assegurando então a construção de uma continuidade de vinculação e construção de identidade. (Kaës, 1991).

No processo de desenvolvimento de vínculos com a instituição, ela pode estabelecer uma experiência de pertencimento a uma comunidade, o que envolve a necessidade de adaptação a regras e a pactos. Estes nem sempre podem ser facilmente compreendidos e seguidos, mas se constituem em funções das formações intermediárias que a instituição pode desempenhar. Tal fato implica na

[...] renúncia pulsional exigida pelo aparecimento da comunidade e da segurança dos seus sujeitos; [...] enfim pelo acordo inconsciente a respeito do que deve ser mantido no recalque ou fora de toda representação para que as condições psíquicas e sociais da vinculação se mantenham na forma de agrupamento que a constituiu. (Kaës, 1991, p.34).

Estas experiências de pertencimento, de respeito a regras e de construção de vinculação pareceram se apresentar, relativamente, como uma novidade para a vida da paciente. Afinal, tratava-se de alguém que fora morar nas ruas aos seis anos de idade, que tinha passagens intermitentes pelos abrigos e que, enquanto esteve na companhia dos irmãos, estabelecera suas próprias regras e táticas para sua sobrevivência. Determinava os próprios horários, normas, ir e vir, sem que precisasse levar em conta limites e exigências estabelecidos por um outro. Na verdade, não havia nenhum “outro“ interessado nela.

Desde que dera à luz, sua vida sofreu expressivas alterações: residência própria e fixa, sem necessidade de ficar circulando sem destino pelas ruas ou abrigos.

Ter se tornado mãe passou a exigir-lhe posicionamentos e decisões que requeriam maturidade, o que ela não tinha. Contudo, a própria inserção no mercado de trabalho fez com que tivesse que se adaptar a normas, que antes lhe eram totalmente inaceitáveis, mas que permitiram a ela a construção de elementos viabilizadores de uma identidade melhor estabilizada, com sentimentos de pertencimento ao grupo social.

Diante desses novos acontecimentos que permearam sua história de vida, Luiza passou a estabelecer novos vínculos e uma relação de confiança com a equipe de profissionais. Deste modo, pôde sentir-se acolhida e ter condições de tratar de questões que envolviam não apenas seu mundo externo, mas também o interno. Constrói-se, assim, outra possibilidade de existência para a subjetividade deste sujeito, já que, como nos diz Winnicott (1975), é no ambiente terapêutico, onde existe espaço para expor o que se passa consigo que a pessoa consegue comunicar-se e fazer-se entender, mesmo que o faça permeada por ansiedade e desconfiança.

Para Luiza, às voltas com aspectos muito arcaicos e regredidos, tornou-se possível o início da construção de uma referência identitária, ao conseguirmos estabelecer com ela uma relação de confiança e de continuidade. Com isto, espera-se que ela consiga, ainda que minimamente, fazer o mesmo em sua relação com o filho, já que desenvolveu recursos internos que a capacitam a conhecer e compreender a si mesma e ao filho.

 

Referências bibliográficas

FREUD, S (1937). Análise terminável e interminável. In: Obras Completas. VOL. XXIII. Rio de Janeiro: Imago, 1969.

KAËS, R. (et al.).  A instituição e as instituições: estudos psicanalíticos. São Paulo: Casa do psicólogo, 1991.

KLEIN, M. & RIVIERE, J. Amor, ódio e reparação. São Paulo: Imago, 1975.

LAPLANCHE, J. & PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1967.

WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1971.

 

 

Notas

*Setor de Terapia de Família da Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria/HUPE/UERJ – Supervisora: Dra. Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado. Trabalho apresentado no XII Fórum de Residência em Psicologia Clínico-Institucional, em setembro de 2008.

**Psicóloga, Residente do segundo ano do Programa de Residência em Psicologia Clínico-Institucional do IP/HUPE/UERJ.