ARTIGOS

 

 

A Práxis Psi no Hospital-Dia: oficina da palavra como dispositivo do bem dizer*

Carolina Steinhauser Motta**

 

 


O campo da Saúde Mental como conhecemos hoje no Brasil começou a ser esboçado na década de 80 a partir de uma série de mudanças implementadas na área de saúde. Tais mudanças ocorreram em virtude da profunda crise na qual a mesma se encontrava, não se restringindo apenas ao setor psiquiátrico.

O modelo de gerenciamento da saúde vigente no Brasil na década de 60, baseado na compra de serviços do setor privado gerou uma mercantilização da doença mental. A privatização da assistência psiquiátrica trouxe como conseqüências o aumento do número de leitos e de internações psiquiátricas além de inibir qualquer ação alternativa ao manicômio. As propostas que escapassem ao modelo asilar hegemônico naquele momento, ficavam restritas a iniciativas isoladas.

Diante da situação de abandono e da violência praticados nos hospitais psiquiátricos e da exclusão que estes impunham aos seus internos surgem diferentes movimentos políticos e sociais de questionamento da psiquiatria manicomial. O Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, o mais representativo da época, leva então para a sociedade a discussão sobre a loucura e o modelo asilar de assistência.

Amarante (1994) pontua que no campo prático passou-se a privilegiar a discussão e a adoção de experiências de desistitucionalização, um processo de desconstrução dos conceitos e das práticas psiquiátricas.

A partir deste momento, inicia-se o movimento gradual de substituição dos asilos por uma série de aparatos de cuidados externos com os Centros de Atenção Psicossocial, os Hospitais Dia, Lares Abrigados, entre outros. Além disso, observa-se a emergência de um novo tipo de profissional que irá constituir as equipes de trabalho em Saúde Mental. Trata-se de profissionais marcados não apenas pela multidisciplinaridade, mas também pelo atravessamento de questões políticas e sociais.

A Reforma Psiquiátrica no Brasil, embora tenha sofrido a influência dos movimentos reformistas de diferentes países, é fortemente marcada pelas questões políticas e sociais. Delgado (2000) aponta que as transformações na assistência psiquiátrica no país são permeadas pela cultura e pelos movimentos políticos da sociedade. O movimento da reforma no Brasil atua no sentido de assegurar a reintegração social do paciente psiquiátrico e garantir seus direitos enquanto cidadão.

O Hospital-Dia Ricardo Montalban foi implantado pelo Serviço de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto em 1993. O Hospital-Dia do HUPE busca uma nova concepção de tratamento para além da internação psiquiátrica que, através da expressão artística, corporal e da participação ativa da família, visa integrar o paciente psiquiátrico na sociedade.

O trabalho desenvolvido no Hospital-Dia do HUPE destina-se ao atendimento de usuários psicóticos fora de crise aguda, de primeiro surto, ou crônicos que necessitem de acompanhamento psiquiátrico. A estratégia de funcionamento do Hospital-Dia possibilita ao usuário uma perspectiva de atenção diferenciada da enfermaria e do ambulatório, favorecendo as mudanças nas suas relações com o meio em que vive. Assim, o Hospital-Dia assume papel importante, pois se responsabiliza pela tarefa de afirmar o usuário como personagem social e não como doente mental.

Atualmente a equipe multidisciplinar do Hospital-Dia do HUPE é composta por psicólogos, uma assistente social, uma terapeuta ocupacional e uma enfermeira, além de residentes e estagiários. As atividades desenvolvidas baseiam-se em oficinas terapêuticas: oficinas de convivência, de jornal, da palavra, culinária, pintura, artesanato e passeio itinerante. Estas oficinas funcionam como mecanismos que possibilitam o vínculo e a troca dos usuários entre si e com os técnicos.

Todas as oficinas realizadas no Hospital-Dia têm como objetivo possibilitar o acolhimento, convocando ao laço social e promovendo assim um lugar em que a expressão é um instrumento de encontro com o outro. Garantem um espaço de convivência e reflexões sobre esta. Portanto, contrapõem-se aos mecanismos de exclusão e isolamento enfrentados pelo portador de sofrimento psíquico, tanto por sua relação singular com a linguagem e a norma, quanto pelo estigma que o cerca. Remetem a possibilidade de convivência entre si e na sociedade. 

No Hospital-Dia são oferecidos além das oficinas atendimentos individuais, atendimentos aos familiares, visitas domiciliares, acompanhamento aos pacientes quando uma internação em outro hospital se faz necessária.

Pode-se dizer que o modelo do Hospital-Dia do HUPE segue a ética da Reforma Psiquiátrica no Brasil, sendo valorizada a ética da cidadania e do cuidado. Assim, o campo de atenção psicossocial é privilegiado como o novo paradigma da assistência em Saúde Mental. Através do suporte oferecido aos seus usuários em diferentes aspectos da vida prática terá entre seus objetivos promover a restituição de sua vida e seu laço social.

No entanto a redução da assistência aos cuidados na esfera do trabalho, da moradia e dos direitos corre o risco de relegar a segundo plano um espaço de trabalho subjetivo do sujeito. Neste momento a psicanálise entra como um diferencial, pois através do dispositivo da escuta analítica, oferece elementos de trabalho subjetivo redefinindo a abordagem da loucura nestes serviços.

Assim, a psicanálise irá levantar a discussão a respeito das características da psicose enquanto estrutura e as dificuldades de atuação do sujeito psicótico no laço social, percebendo o perigo de impor ideais de funcionamento que remetam a um aspecto pedagógico e normalizador.

Ao pensar a atuação do analista junto ao sujeito psicótico, está se falando da sustentação de uma oferta de acompanhamento que respeita e valoriza suas manifestações inconscientes, pois são estas manifestações que veiculam seu desejo. Rinaldi (1998) irá apontar que é justamente a partir da ética do desejo que se pode orientar a intervenção dos técnicos.

É possível, assim, observar que o sujeito da psicanálise não é o sujeito da reforma. O sujeito da psicanálise é o sujeito do inconsciente, enquanto o sujeito da reforma é o cidadão. A clínica psicanalítica do sujeito psicótico não tem como finalidade o resgate de sua cidadania, ainda que a psicanálise considere esta questão importante. A atuação do analista na área de Saúde Mental visa o trabalho subjetivo do sujeito psicótico para que este tenha condições então de se conduzir no laço social.

Dentre as oficinas oferecidas no Hospital-Dia aos seus usuários, tive a oportunidade de participar de algumas, no entanto a que mais me chamou atenção, por oferecer um espaço diferenciado aos usuários foi a “oficina da palavra”.

Esta oficina ocorre semanalmente no Hospital-Dia e tem como proposta de trabalho contribuir para as condições de autonomia e resgate da vida sócio-afetiva do psicótico, assim como as outras oficinas oferecidas no HD. No entanto, o material de trabalho da “oficina da palavra” é a fala, dessa forma, apesar de não ser uma oficina voltada especificamente para uma clínica psicanalítica, é dado ao psicótico uma oportunidade de se implicar em seus atos, circunscrevendo os termos de sua existência.

A produção psicótica tem um lugar fundamental para cada sujeito, pois como aponta Tenório (2001) o delírio é o trabalho pelo qual o psicótico reconstrói o mundo de maneira a poder viver nele. O delírio nada mais é do que uma tentativa de barra a invasão do Outro, ou ainda, de circunscrever um real que invade esse sujeito a todo instante. É através da escuta desta produção subjetiva tão particular que é possível atuar na tentativa de dar um suporte no processo de construção de significantes que barrem a invasão desse Outro.

Assim, o discurso do psicótico deve ser valorizado, pois ele veicula um desejo do sujeito. Segundo Rinaldi (1998) é naquilo que o psicótico fala, que ele se dá a conhecer, mesmo que não possa reconhecer-se no que diz A escuta permanece como instrumento essencial do tratamento, na medida em que a psicose é concebida como algo que implica uma relação particular do sujeito com a linguagem.

A “oficina da palavra” oferece esse espaço  destinado fundamentalmente a escuta; onde falar e ouvir são as atividades, quando, por exemplo, uma usuária relata que tem muito medo, medo até de si própria, do que é capaz de fazer. Relata que recentemente deu uma martelada em seu pé para não machucar sua “cuidadora”. Conta que sua “cuidadora” não lhe entende bem, não gostaria de ter uma “cuidadora”, mas não consegue falar isso para sua família. Outra usuária relata que também já teve medo quando ficava em casa sozinha, sente medo de agredir os outros; no entanto, tem conseguido se controlar para não ser internada.

Neste contexto o que não consegue ser dito pode encontrar um lugar, pode ser compartilhado, estranhado, deixar de ser uma queixa e tornar-se uma questão que implica aquele que fala com o que lhe acontece buscando alguma possibilidade de desassujeitamento. Criar condições de possibilidade para essa tarefa é a função do coordenador.

No discurso dos usuários do Hospital-Dia é também possível verificar a dificuldade que cada sujeito apresenta ao lidar com essa relação de dependência e submissão do Outro. A “oficina da palavra” aparece recorrentemente como um espaço aonde os usuários conseguem falar sobre isso. Um usuário relata em uma das oficinas “minha mãe me oprime e humilha”. O mesmo diz não conseguir se ver livre disso, não consegue guardar nenhum segredo de sua mãe, ela o intimida. Em seguida pontua “minha mãe suga minha energia”. Na mesma oficina outra usuária relata que só a morte separa as pessoas. Relata viver colada nos outros. Uma terceira segue dizendo que desde criança é colada nos pais, não conseguindo explicar como isso ocorre. Por fim, a mesma pontua que ficar dependendo dos outros é a morte.

A questão da internação também é um tema freqüente na oficina. Um usuário chega certo dia contando que seria internado, mas o médico achou melhor não interná-lo e o mesmo relata tristeza. O grupo questiona e não entende porque o usuário gostaria de ser internado. Uma usuária pontua que a internação é uma coisa muito ruim e que é importante que ele permaneça com sua família, pois internação é só para quem está em crise. Em seguida a usuária relata o quanto gosta de freqüentar o Hospital-Dia, pois naquele espaço aprendeu a falar, não machucar as pessoas e fazer amigos.

É possível observar através da oficina o quanto a internação causa muita angústia e medo em muitos usuários, até porque muito deles já tiveram essa experiência em algum momento. Outros permanecem tão presos ao discurso dos médicos, nessa posição de objeto do Outro, que acreditam que a internação ainda é o melhor lugar para estar, afinal em uma internação ele não precisa se implicar em seu tratamento, ficando submisso ao cuidado de um terceiro.

A questão da medicação também aparece muito no discurso dos usuários na “oficina da palavra”. Em uma determinada oficina uma usuária questiona-se o porquê tem que tomar tantos medicamentos. Outra pontua que sabe que tem o diagnóstico de esquizofrenia, e que tem que tomar seus medicamentos por toda vida. No entanto, não sabe o que é esquizofrenia e nem quais são seus sintomas.

Oferecer a esses usuários um espaço onde há uma escuta de sua história particular, dá a possibilidade com que estes se impliquem em suas questões, abrindo a possibilidade de se situar como sujeitos. A fala de uma usuária deixa isso muito claro quando ela diz “falar o que a gente sente, traz a órbita”. Outra pontua que apenas no Hospital-Dia ela consegue ser ela mesma; mostrar seu verdadeiro eu.

Espaços, como a oficina da palavra, respeitam a singularidade de cada sujeito no enfrentamento de questões que atravessam as relações de sua vida cotidiana. É preciso, portanto, dar créditos às suas palavras e não apenas escutar por escutar, indicando que sua palavra é importante. Não se trata de acolher o psicótico com o objetivo de reeducá-lo ou readaptá-lo a partir de um saber já pronto. Rinaldi (1998) destaca que a escuta do discurso do psicótico é fundamental, não por questões humanitárias, mas pela concepção de que a psicose apresenta uma relação muito particular com a linguagem onde se evidencia a relação com o desejo. É isso que precisa ser escutado e não calado.

Portanto, é necessário que espaços como a “oficina da palavra” sejam valorizados nos dispositivos da reforma psiquiátrica. Há o desafio permanente de manter aberto esse lugar da fala, onde possamos escutar esses sujeitos e escutar a nós próprios, buscando um constante questionamento de nosso lugar e nossa prática.

 

Referências Bibliográficas

AMARANTE, P. Asilos, alienados e alienistas – Pequena história da psiquiatria no Brasil. In: AMARANTE, P (Org). Psiquiatria social e reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1994.

DELGADO, P. Perspectivas da psiquiatria pós-asilar no Brasil. In: TUNDIS, S. A.& COSTA, N. R (Orgs.). Cidadania e loucura: Políticas de saúde mental no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2000.

TENÓRIO, F. A psicanálise e a clínica da reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.

RINALDI, D. A ordem médica: a loucura como “doença mental”. Em Pauta Revista da Faculdade de Serviço Social da UERJ, Rio de Janeiro: UERJ, n. 13, p., 103-115, jul./dez. de 1998.  

 

 

Notas

* Trabalho realizado no setor de Psiquiatria do HUPE sob a orientação do Prof. Ademir Pacelli Ferreira.

** Residente do primeiro ano do Curso de Especialização em Psicologia Clínico-Institucional, modalidade Residência Hospitalar.