ARTIGOS

 

 

Reflexões sobre o trabalho na oficina de corpo na enfermaria psiquiátrica do HUPE*

Ana Beatriz Raimundo de Castro**; Cristiane Bueno Iatauro***

 

 


A proposta deste trabalho é levantar algumas considerações acerca da prática das oficinas em saúde mental em nosso contexto atual e também acerca da importância do corpo na origem do psiquismo, numa tentativa de pensar o trabalho que foi realizado na “oficina do corpo”. 

A “oficina do corpo”, realizada semanalmente no Espaço de Atividades e Convivência Nise da Silveira, foi instituída em julho de 2007 por iniciativa da equipe de psicologia (composta por residentes e estagiários), de uma terapeuta ocupacional e de um artista plástico.

Esta oficina surgiu a partir de uma tentativa de aprimoramento da oficina Criativa. Atividade que já acontecia na enfermaria psiquiátrica do HUPE às quartas-feiras às 10h30min e consiste na construção de um espaço coletivo de criação, aonde a expressão plástica é livre e o tema, na maioria das vezes, é escolhido pelos usuários. Utilizando-se de materiais diversos, tais como tinta, giz de cera, cola colorida, barbante, entre outros, o paciente tem a possibilidade não apenas de compartilhar com a equipe e com os outros pacientes, ampliando assim seu contexto de trocas interpessoais, mas também de produzir algum trabalho, trabalho pensado aqui como subjetivo. Pautamo-nos em Lacan quando aponta que a criação artística pode, assim como o delírio, funcionar ao psicótico como uma suplência ao gozo do Outro que lhe é tão terrível e aniquilador (Tenório, 2001).

Funcionando como uma etapa preliminar à oficina criativa, a oficina do corpo visava colocar em jogo a via corporal, sensorial e tática através de atividades que possibilitassem, de alguma forma, a delimitação do corpo próprio entre os pacientes. Partimos de Freud quando nos marca, em O ego e o id (1923), a importância do corpo na origem do psiquismo ao afirmar que “o ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal” (Freud, 1923:39). 

A fim de delimitarmos nosso contexto atual em saúde mental, demarcaremos a Reforma psiquiátrica brasileira como um processo datado de pouco mais de 20 anos que tem como marca distintiva e fundamental o reclame da cidadania do louco. A reforma é, sobretudo, um campo heterogêneo que abarca transformações clínicas, políticas, sociais, culturais e jurídicas numa tentativa de dar à loucura uma outra resposta social (que não a segregação) e dar ao louco um outro lugar social (Amarante, 2007). Nessa paisagem, inserem-se as novas modalidades abertas de assistência ao portador de transtornos mentais, que seriam substitutivas ao manicômio, tais como CAPS, residências terapêuticas, hospitais-dia, leitos em hospitais gerais e oficinas terapêuticas que, em comum, apresentam o ideal de ressocialização, de reintegração do usuário a uma rede comum de significados cotidianos partilhados socialmente (Guerra, 2004).

Segundo Guerra, no interior dos novos dispositivos da rede de atenção citados acima, surgiram novas formas de acolhida e acompanhamento caracterizadas pela associação entre as vertentes clínica e a política. Nelas a ênfase na particularidade de cada caso, o trabalho multiprofissional, a escuta e o respeito ao louco favoreceram a recuperação do uso da atividade como um valioso recurso no tratamento clínico e na reabilitação psicossocial. Nessa perspectiva, as oficinas reapareceram introduzindo um novo elemento à paisagem institucional da assistência em saúde mental (Guerra, 2004).

A associação entre as finalidades político-social e clínica seria, no entender de Guerra, uma marca diferencial do uso das oficinas nos serviços de saúde mental. Essa associação implica um novo conceito de clínica – denominada clínica ampliada. O uso político aparece como um resgate da possibilidade do exercício da vida pública para o usuário, sustentado pela idéia de inserção social, isto é, de participação na vida cultural e pública de sua comunidade. Busca-se também ir além do desenvolvimento de habilidades e introduzir na cultura a diferença que a loucura representa (idem).

Outro ponto do uso atual das oficinas diz respeito à utilização de profissionais que não são do campo da saúde mental na coordenação das mesmas, idéia derivada do incentivo à circulação mais ampla da loucura para além do restrito universo do discurso “psi” que a sustentava nos antigos tratamentos asilares. A entrada, por exemplo, do artista e do artesão como monitores nas oficinas possibilita uma leitura diferenciada da produção da loucura, inserindo-a num outro registro simbólico e cultural. Esta prática foi resgatada da terapêutica ocupacional introduzida por Nise da Silveira no final da década de 40. Esta terapêutica, que destacou o respeito à produção subjetiva do louco e deu um novo impulso às atividades em saúde mental, colocando-as em pé de igualdade com as demais intervenções de cunho biológico características daquele período (Guerra, 2004).

Freud, mesmo sem ter tido uma clínica da psicose, é o inaugurador desta ao afirmar que “com o trabalho dos seus delírios Schreber reconstruiu o mundo de modo a poder viver nele mais uma vez” (Freud, 1911). Assim, Freud positiva a produção psicótica mostrando que ela é uma tentativa de cura e que o sujeito deve ser buscado justamente em seu delírio. Isto equivale a dizer que, através do trabalho do delírio, o psicótico pode se produzir como sujeito.

Lacan, ao avançar sobre as conceitualizações expostas por Freud sobre a psicose, nos possibilita entender que a expressão “trabalho do delírio” diz respeito ao trabalho feito pelo sujeito na tentativa de reinterpretar o Outro que o invade (Tenório, 2001).

É importante destacar que a produção psicótica através da qual o sujeito encontra um lugar não se reduz ao delírio. Lacan afirma que a criação artística também pode funcionar como suplência. A obra, o fazer e a criação podem também ter o efeito de conter o gozo que invade o sujeito na psicose. Aqui entra o trabalho das oficinas, trabalho pensado aqui como trabalho subjetivo, sendo a oficina um dispositivo de produção de sujeito, podendo servir como um organizador da condição subjetiva do paciente (idem).

Diferentes elementos1 poderão (ou não) servir como um ponto de ancoragem ao psicótico, elementos tais como: uma significação delirante, uma produção artística, uma identidade imaginária e até o espelhamento em semelhante o que pode, em nosso entender, proporcionar ao psicótico uma sensação apaziguadora de unidade corporal, em contraste às sensações de despedaçamento corporal presentes na psicose em decorrência das terríveis invasões do Outro. Passemos então para as considerações a respeito da importância do corpo na origem do psiquismo.

Fontes (2006) ressalta que o corpo, desde muito cedo, está implicado na constituição do psiquismo e salienta que o nascimento biológico e o nascimento psicológico não coincidem no tempo. Freud também havia atentado para este fato ao afirmar em “Sobre o narcisismo: uma introdução” que “uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o começo; o ego tem de ser desenvolvido... sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao auto-erotismo – uma nova ação psíquica – a fim de provocar o narcisismo” (Freud, 1914:84). O narcisismo seria, então, o momento apontado por Freud no qual se daria o primeiro esboço da consciência de si.

Fontes (idem) destaca ainda o lugar especial que Freud reserva ao corpo na origem do psiquismo dizendo que ele não apenas postulou, em O ego e o id (1923), a existência de um ego corporal anterior a tudo, como também chamou a atenção para a questão da superfície do corpo, da pele. Freud diz no mesmo artigo que “o ego deriva em última instância das sensações corporais, principalmente daquelas que têm fonte na superfície do corpo” (Freud, 1923, Apud, Fontes, 2006). Assim, a autora destaca que o ego pode ser considerado uma projeção mental da superfície do corpo, sendo a experiência tátil um modelo da experiência psíquica.

Procurando formular o surgimento do eu, Lacan retoma conceitos freudianos fundamentais tais como ego, identificação e narcisismo e, baseado na idéia de que o eu se constrói primeiramente a partir do outro, em especial a partir da imagem que lhe é devolvida pelo semelhante, o autor marca o desconhecimento e a alienação como constitutivos do eu. De fato, por meio da elaboração do registro Imaginário e do esquema conceitual proposto pelo estádio do espelho, Lacan, guiado por Freud, estabelece uma íntima relação entre o eu e o corpo na constituição do sujeito (Cukiert e Priszkulnik, 2002).

O estádio do espelho se refere à forma como a imagem do corpo próprio, a partir do outro, tem papel fundamental na formação do eu e na imagem assumida pelo sujeito. Situado entre o sexto e o décimo oitavo mês de vida, o estádio do espelho é a expressão cunhada por Lacan para apontar o momento psíquico no qual “a criança antecipa o domínio de sua unidade corporal através de uma identificação com a imagem do semelhante e da percepção de sua própria imagem num espelho” (Roudinesco & Plon, 1998, Apud Cukiert e Priszkulnik, 2002). O estádio do espelho especificaria o momento original a partir do qual a criança estabeleceria uma diferença entre o seu corpo e o mundo exterior, permitindo situar o eu do não eu (idem).

Nosso objetivo aqui não é tanto nos aprofundarmos nas considerações, extensas e complexas de Lacan a respeito do estádio do espelho, pois isto exigiria outro trabalho, mas sim levantarmos alguns pontos que nos possam servir como norteadores para pensarmos a importância do corpo na origem do psiquismo.

A partir das considerações acima, podemos pensar que para adquirir um primeiro senso de unidade psíquica o sujeito precisa alcançar uma consciência de separação do outro, da mãe. Trata-se, inicialmente, de uma separação entre corpos, salienta Fontes. É preciso sair da unidade-dual para perceber a existência de um eu e de um não-eu, este é o passo inicial para o desenvolvimento de um psiquismo (Fontes, 2006). Este processo ocorre gradualmente, pois o bebê vai oscilar entre uma ilusão de continuidade física e uma quebra da continuidade corporal. Porém, em casos limites, estados deprimidos e, poderíamos talvez acrescentar, nas psicoses, o que estaria em jogo, segundo Fontes, seria que tal processo de separação não se daria de forma adequada, o que teria como conseqüência uma precária construção de eu, ainda não totalmente discriminada de um não eu (Fontes, 2006).

Nossa proposta ao pensarmos em inserir o trabalho com o corpo em uma oficina da enfermaria psiquiátrica do HUPE foi, como dissemos anteriormente, pautada na idéia de que este trabalho pode proporcionar ao psicótico uma sensação apaziguadora de unidade corporal2. Sendo assim, tentamos incluir na “oficina do corpo” atividades que, de alguma forma, levassem os pacientes a uma melhor delimitação do corpo próprio e de separação do corpo do outro. Passaremos assim ao relato de como se dava o planejamento da oficina do corpo.

Com o objetivo de construir a oficina do corpo, realizávamos supervisões semanais entre a equipe nas quais não apenas planejávamos as atividades seguintes, como também refletíamos sobre as atividades realizadas. Antes do início de cada atividade, preparávamos o espaço e o material a ser utilizado, tentando propiciar um ambiente acolhedor. A cada vez, havia um primeiro tempo de convite a cada paciente internado na enfermaria, podendo o mesmo aceitar ou não participar daquela atividade. Depois de realizada a atividade, tínhamos o cuidado de finalizá-la com um tempo de reflexão sobre a mesma, no qual cada participante podia verbalizar como viveu aquela experiência. 

Para ilustrar nossa experiência, selecionamos duas atividades:

1) Em uma mesma folha grande de papel pardo posicionada no chão, foi pedido que cada paciente desenhasse o contorno, usando hidrocores coloridos ou giz de cera, do corpo ou de um membro do corpo (já que alguns pacientes preferiram não deitar no papel e colocaram apenas o pé ou a mão no papel para ser desenhado) de outro participante da oficina. Cada participante não apenas desenhava como também se deixava ser desenhado.

Percebemos que a atividade foi bem recebida pela maioria do grupo que relatou-nos “sentir-se bem” com a experiência. Os pacientes buscavam um reconhecimento da imagem do seu corpo: “de quem é este corpo?”, “vou pintar as unhas da mão da fulana de vermelho”, “olha aqui como ficou meu cabelo”.  Vale a pena salientar também que, como houve uma sobreposição dos contornos dos corpos desenhados, os diferentes corpos formaram uma figura denominada pelos pacientes de “o corpo”.

Num segundo momento, já na oficina criativa, os pacientes levaram o papel pardo e puderam trabalhar, de forma livre (pintando o contorno, preenchendo-o da maneira que quisessem), em cima dos contornos dos corpos que foram desenhados.

2) Em outro encontro realizamos uma atividade de experimentação das mãos com o objetivo de trabalhar diferentes intensidades, forças, texturas, barulhos e delimitação corporal a partir do contato. A atividade foi dividida em quatro momentos.

No primeiro momento da atividade, propusemos aos pacientes uma seqüência de exercícios em seu próprio corpo. Solicitamos que estes olhassem e tocassem as suas mãos sentindo o formato e o contorno. Em seguida que acariciassem o rosto e que tocassem seus braços sentindo as diferentes intensidades do toque.

No segundo momento, separou-se os participantes em duplas, e um experimentava no corpo do outro a mesma seqüência dos exercícios anteriores, um de cada vez.

Num terceiro momento, foram realizados exercícios coletivos produção e criação de barulhos, sons e movimentos. Na seqüência, foi pedido que cada participante propusesse um movimento/ exercício, com as mãos para ser realizado pelo grupo.

Após a realização da atividade houve um momento de discussão e reflexão, no qual os participantes relataram que a oficina havia sido muito boa e emocionante. Algumas falas dos participantes: “deu para sentir a força da minha mão”, “foi bom sentir a mão”, “essa oficina é muito boa, pois sentimos o corpo que fica esquecido”, “gostei de ver as diferenças entre as mãos”, “mexer com a mão lembra várias coisas da minha vida”, “foi bom, pois na maior parte das vezes o tratamento esquece o corpo, que é tão importante”.

 

Referências Bibliográficas:

AMARANTE, Paulo – Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007.

CUKIERT, Michele e PRISZKULNIK, Léia – Considerações sobre o eu e o corpo em Lacan. In: Estudos de Psicologia, 2002.

FONTES, Ivanise – A ternura tátil: o corpo na origem do psiquismo. In: Revista Psychê, anoX, número 17. São Paulo, 2006.

FREUD, Sigmund [1911], Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia. In: Edições Standard Brasileira das obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIII, Rio de janeiro: Imago1996.

______________ [1914],  Introdução ao narcisismo. In: Edições Standard Brasileira das obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV, Rio de Janeiro: Imago, 1996.

______________ [1923], O ego e o id. In: Edições Standard Brasileira das obras Completas de Sigmund Freud. Vol.XIX, Rio de Janeiro: Imago, 1996.

GUERRA, Andréa Máris Campos – Oficinas em saúde mental: percurso de uma história, fundamentos de uma prática.  In: Costa, C. e Figueiredo, A. C. (org) – Oficinas terapêuticas em saúde mental: sujeito, produção e cidadania. Rio de Janeiro: Contra capa, 2004.

TENÓRIO, Fernando – A psicanálise e a clínica da reforma psiquiátrica. Rio de janeiro: Rios ambiciosos, 2001.

 

 

Notas

* Trabalho realizado no Espaço de Atividades e Convivência Nise da Silveira da UDA de Psiquiatria do HUPE/UERJ, com supervisão do prof. Ademir Pacelli Ferreira.

** Residente do segundo ano de Psicologia Clínico – Institucional – IP/HUPE/UERJ.

*** Residente do segundo ano de Psicologia Clínico – Institucional – IP/HUPE/UERJ.

1 Daí a importância de os serviços serem os mais diversificados possíveis e oferecerem diferentes atividades e oficinas, aumentando assim o leque de possibilidades para o paciente.

2 Em contraste às sensações de despedaçamento corporal presentes na psicose em decorrência das terríveis invasões do Outro.