ARTIGOS

 

 

Considerações acerca da prática do diagnóstico: de sujeito a objeto*

Paula Figueiredo de Oliveira**

 

 


Atuando como residentes dentro de um hospital universitário somos convocados diariamente a refletir sobre o conhecimento produzido na e pela instituição e do qual também somos autores. Como proposta de trabalho, trago aqui o caso de Joana, paciente que acompanhei no setor de Cirurgia Cardíaca e na enfermaria de Cardiologia, com o intuito de pensar a questão da produção de conhecimento implicada na prática do diagnóstico.

Joana é uma paciente de 60 anos portadora de insuficiência cardíaca há aproximadamente dez anos e que se internou no HUPE para colocação de uma válvula. Após permanecer por seis meses na enfermaria de Cardiologia aguardando a compra de material, a paciente foi transferida para o setor de Cirurgia Cardíaca para, finalmente, ser operada.

            Comecei a atendê-la após a cirurgia. Embora tenha se mostrado bastante receptiva em nossos primeiros encontros, Joana se mantinha em silêncio na maior parte do tempo. A despeito do seu aparente mutismo, continuei retornando ao seu leito, possibilitando assim que, pouco a pouco, um vínculo terapêutico se estabelecesse.

            Com o tempo, ou melhor, no seu tempo, Joana começou a falar. Contou que foi casada, teve seis filhos, um deles morto em um acidente, e que era avó de vinte netos. Seus netos, a propósito, eram motivo de grande alegria. Referia-se a todos com grande saudade demonstrando carinho especial por uma neta que completaria quinze anos em poucos meses. Joana falava com grande expectativa dos planos de sua família para fazer uma festa em comemoração aos 15 anos de sua neta e agradecia a deus por estar recuperada para o que ela considerava ser uma data muito especial.

            Ao longo dos atendimentos, Joana falou também da luta para criar seus filhos, da dor de ter perdido um deles e de suas dificuldades financeiras. Sua situação econômica era realmente delicada. Mesmo tendo trabalhado durante toda a vida como diarista ela não poderia se aposentar uma vez que nunca teve sua carteira de trabalho assinada. Sem condições de trabalhar por conta da cirurgia, Joana não dispunha de nenhuma renda naquele momento. Seus filhos, quase todos desempregados, não tinham condições de lhe ajudar.

            Sobre seu problema cardíaco Joana quase nunca falava. Reclamava às vezes de algumas dores no peito que, a propósito, são comuns após uma cirurgia como a sua. Sem apresentar maiores complicações no seu pós-operatório, ela foi embora para casa vinte dias depois de realizar a cirurgia.

            Após uma semana de sua alta, Joana retorna ao serviço de Cirurgia Cardíaca se sentindo mal e é novamente internada por conta de uma pneumonia. Depois de permanecer dois dias no setor, ela é transferida para a enfermaria de Cardiologia onde deveria permanecer até se restabelecer.

            Com sua ida para a Cardiologia, a psicóloga responsável pela enfermaria me procurou solicitando que eu continuasse acompanhando a paciente uma vez que a mesma havia citado meu nome indicando que algo de uma transferência havia se estabelecido. A psicóloga relatou que a equipe da Cardiologia estava bastante preocupada com a paciente, pois os médicos acreditavam que sua reinternação pudesse estar associada a um quadro de depressão maior. Para algumas pessoas da equipe tendo desistido da vida Joana estaria se entregado a doença.

            Ouvindo o relato da psicóloga da enfermaria fiquei bastante surpresa com a opinião da equipe sobre a paciente. Depressão maior? Desistência da vida? Não era isso que Joana indicara durante nossos atendimentos na cirurgia cardíaca. Com essa questão na cabeça segui atendendo a paciente na Cardiologia durante os dois meses em que ela teve que permanecer internada até se recuperar de sua pneumonia.

            O primeiro atendimento após seu retorno foi muito difícil. Joana relatou o susto que levou ao saber que teria que ficar internada novamente e a semana difícil que tivera por conta da falta de dinheiro para comprar seus remédio e, até mesmo, comida. Aquilo foi o ponto de partida para que Joana narrasse de maneira mais aberta a vida dura que tivera. Falou em detalhes sobre sua extrema pobreza, o abandono do marido, a dificuldade para criar seus filhos e as limitações impostas pela doença. Seu discurso revelava um sofrimento muito concreto, quase palpável e quase tão difícil de atravessar quanto de ouvir.

            Após fazer essa espécie de balanço de sua vida naquela hora e meia de atendimento ela se volta para mim e pergunta: “Eu vou melhora?”. Sabendo que disso eu nada poderia afirmar apenas devolvi a pergunta. Ela então me respondeu sem titubear: “Ah, eu acho que vou melhorar sim, ainda não está na hora de eu ir para o buraco. Tenho que ver meus netos crescerem, tem a festa de 15 anos da minha neta. Tem muita coisa ainda.”

            Ouvindo sua resposta lembrei da hipótese de depressão maior levantada pela equipe. Se suas palavras não eram conclusivas sobre algum tipo de diagnóstico, ao menos indicavam que havia algum tipo de investimento na vida por parte daquele sujeito. Dizendo acreditar na sua melhora Joana dava pistas de que sua aposta era na vida e não na morte.

            Pensando na questão do diagnóstico atribuído à paciente fui procurar alguém da equipe de cardiologia para conversar. Fui recebida por uma médica que acompanhava Joana desde o inicio de sua primeira internação. A primeira coisa que ela me perguntou foi se eu concordava que a paciente estivesse com uma depressão grave.

            Questionei o que a levava a acreditar nisso e ela respondeu que além de chorar sozinha algumas vezes, a paciente não demonstrava interesse em participar das atividades de artesanato da enfermaria, ou em se juntar às outras pacientes para conversar e ver televisão. Ao contrário, ela estava sempre isolada em seu leito com a cabeça coberta, aparentando um humor deprimido. A médica afirmou ainda que Joana demonstrava ser o tipo de paciente que apresenta certa resistência em aderir ao tratamento, se entregando, com isso, à própria doença.

            Respondendo à médica, disse que não acreditava se tratar de uma depressão maior. Havia no discurso de Joana um sofrimento real muito grande, mas ao mesmo tempo, ela apontava um enlaçamento à vida impossível de imaginar numa pessoa com depressão maior. A médica então me respondeu que chamaria um psiquiatra para avaliar melhor o caso e assim ficamos.

            Dando seguimento aos atendimentos, à medida que ia se colocando a falar, Joana ia pontualmente respondendo às considerações da médica sobre seu possível diagnóstico. Contou que chorava quando pensava na morte de seu filho e que nunca lembrara tanto disso quanto naquele momento em que também sentia medo de morrer. Na ocasião de sua morte ela não se permitiu chorar porque tinha que reunir forças para criar seus outros filhos. Somente agora, cinco anos depois do ocorrido, Joana afirmava poder chorar e, sobretudo, falar sobre essa perda indicando a elaboração de um luto a partir de sua internação.

            Sobre o desinteresse geral atribuído pela médica à paciente por conta de sua pouca participação no cotidiano da enfermaria descobri, um pouco por acaso, que ele se devia, em parte, a um problema de visão. Certo dia estava atendendo Joana em seu leito quando outra paciente da enfermaria se aproximou convidando-a para fazer fuxico. Ela desconversou dizendo que estava ocupada com a psicóloga e que se desse depois passaria lá.

            Quando a outra paciente se afastou ela então me disse que não tinha como fazer fuxico porque não enxergava direito. Às vezes ela até se aproximava do grupo para conversar um pouco, mas não tinha como participar simplesmente porque não enxergava a linha ou a agulha e que até para ver televisão era ruim. Ela acompanhava a programação mais pelo som do que pela imagem e, por isso, não tinha interesse em sentar em frente à televisão como faziam as outras pessoas.

            Fiquei surpresa quando ela me disse que me reconhecia pelo meu cabelo e pela minha voz porque da minha fisionomia ela via pouco. Joana não participava do artesanato e não sentava para ver televisão muito mais em função do seu problema de visão do que por uma possível falta de interesse nas coisas do cotidiano.

            Diante dessas evidências que Joana ia indicando, fiquei me questionando se essa equipe em algum momento havia se proposto a ouvi-la e foi a mesma quem me deu a resposta. Certa vez fui atendê-la e ela estava com a cabeça coberta. Chamei seu nome e ela então se levantou. Perguntei se ela estava dormindo e ela me disse que não, que ficava com o rosto coberto porque ali ia muita gente e ela não gostava de conversar. Contou que, sendo nascida e criada na roça, era um bicho do mato e gostava de ficar quieta no seu canto ouvindo o silêncio. Disse ainda que, mesmo depois que veio para a cidade, sempre preferiu ficar recolhida fumando um cigarro e ouvindo seu rádio.

            Joana reclamou do barulho da enfermaria e disse em voz baixa como se estivesse me contando um segredo: “Aqui vem muito povo. Tem os crentes fazendo oração sem a gente pedir. Vem também sempre esse monte de aluno e professor, fica todo mundo olhando, apontando, fazendo um monte de pergunta chata. No fundo não falam nada que me diga respeito. Eu sei que eles têm que estudar, mas tem dia que eu ‘tô’ de ovo virado não ‘tô’ afim... aí eu cubro a cabeça e fico quietinha na minha.”

            Refletindo sobre o posicionamento da equipe diante do caso da paciente podemos observar vestígios do discurso pregnante da sociedade contemporânea, onde a felicidade se apresenta como obrigação e toda forma de sofrimento é encarada como sintoma. Tal discurso tem implicação direta em nossa atuação, pois somos cada vez mais convocados a responder sobre os casos que não se enquadram perfeitamente num ideal, seja ele de felicidade, beleza ou juventude, muitas vezes ratificado através das práticas institucionais.

            A hipótese equivocada de depressão maior trazida aqui é um exemplo disso. O que representava atribuir um diagnóstico desses a Joana? O que a depressão maior dizia a respeito daquele sujeito em particular?

            Tentando entender a dinâmica do processo diagnóstico recorro ao que Adriano Aguiar Amaral discute em seu livro Psiquiatria no Divã (2004). Nele o autor nos apresenta uma cartografia das relações de força engendradas no exercício do diagnóstico e que atuam produzindo novos modelos de verdade e de práticas institucionais.

            Segundo Amaral, sendo o diagnóstico dentro da medicina em geral um procedimento que permite que a doença seja abstraída do corpo vivo individual para ser classificada independente do paciente como se fosse universal, na psiquiatria o DSM, em particular o DSM III, foi o artifício que tornou isso possível. Ao se colocar como um instrumento descritivo e ateórico, o DSM III, permitiu que os transtornos mentais pudessem ser tomados como entidades mórbidas, podendo ser classificados e analisados independente das particularidades dos sujeitos que os sofrem.

            Dentro dessa perspectiva a dimensão do sujeito é desconsiderada ao mesmo tempo em que ocorre uma supervalorização dos seus sintomas observáveis. O paciente é territorializado em um diagnóstico “onde tudo o que ele vier a dizer após receber o diagnóstico será interpretado segundo os termos usados no interior desse território” (Amaral, 2004, p. 67)

            Isso que Amaral descreve tão claramente em muito se assemelha ao caso de Joana onde um diagnóstico de depressão maior lhe foi imposto de fora a partir de alguns comportamentos observados pela equipe e rapidamente transformados em sintoma.

            Não pretendo aqui fazer uma revisão crítica do DSM ou uma campanha contra a utilização do diagnóstico. Minha proposta é pensar a sua utilização considerando que estamos em uma instituição, em particular uma instituição universitária, onde a questão do conhecimento está ligada à prática profissional de forma premente.

            Foucault em sua obra A verdade e as formas jurídicas (1974) faz uma análise acerca da produção de saberes baseada em determinadas práticas sociais veiculadas pelo discurso das chamadas instituições disciplinares. Tais instituições funcionam como uma espécie de dispositivo articulador entre modos de exercício de poder e produção de saber.

            Segundo Foucault (1974), o tipo de poder instalado nessas instituições é, entre outras coisas, polimorfo, se desdobrando, portanto em múltiplos caracteres, sendo um destes o epistemológico. Sendo assim, o poder da instituição produz saberes e o faz duplamente, ora extraindo saber dos indivíduos, ora elaborando um saber sobre eles. E é justamente esse saber produzido sobre os indivíduos que nos interessa tratar aqui, pois é dele que estamos falando quando dentro da instituição hospitalar observamos, classificamos e, em última análise, diagnosticamos um sujeito.

            O diagnóstico atribuído à Joana ilustra bem esse conhecimento que é produzido sobre determinado sujeito e do qual, já de partida, ele está excluído. Muitas vezes, o ato diagnóstico inscreve o sujeito em um universo do qual ele não domina os termos empregados assim como suas regras de funcionamento além de nada dizer sobre ele. É a figura do especialista quem conhece sua doença e pode estipular o seu tratamento num processo silencioso de assujeitamento favorecendo que ele deslize da posição de sujeito de sua história a objeto de conhecimento do outro.

            Para concluir retomo o caso de Joana. Alguns exames foram realizados na tentativa de encontrar bases orgânicas de sua depressão. Diante da negativa dos resultados, tão logo se recuperou da pneumonia a paciente recebeu alta. Quanto aos nossos atendimentos, embora nosso tempo tenha sido curto, acredito que a oferta de uma escuta tenha possibilitado a Joana (re) situar algo do seu sofrimento através da palavra, como ela mesma indicou ao falar no nosso último encontro da importância de ter “desabafado sobre algumas coisas da vida que há muito tempo estavam guardadas”.

            Para mim, psicóloga-residente-em-formação, esse caso indicou a importância de tentar ultrapassar a dicotomia subjetivo/objetivo na direção de uma prática que ultrapasse o reducionismo, seja ele médico, psi ou de qualquer ordem, e que comporte a multiplicidade de práticas que concorram para dar consistência ao processo terapêutico.

            Recorrendo mais uma vez a Foucault, agora citado por Amaral (2004), ele nos sinaliza sobre a importância de uma atuação voltada para a criação de novos territórios existenciais onde o que se procura não é atingir um estado pleno de felicidade e sim uma capacidade de tolerar o sofrimento e criar condições de ultrapassar o que nele produz assujeitamento e impede a expressão da plasticidade da vida.

 

Referências Bibliográficas

AGUIAR, Adriano Amaral de. A psiquiatria no divã: entre as ciências da vida e a medicalização da existência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Cadernos da PUC/RJ, 1974.

 

 

Notas

* Trabalho desenvolvido no setor de Cirurgia Cardíaca do Hospital Universitário Pedro Ernesto sob supervisão da preceptora Sheila Orgler.

** Psicóloga, residente do primeiro ano do Curso de Psicologia Clínico-Institucional do IP/HUPE-UERJ