ARTIGOS

 

 

Tempo e Espera: Falando sobre a Angústia na Cirurgia Cardíaca*

Ana Maria Villardo**; Taís Devens Donati***

 

 


“Então, D. Maria, não tem jeito, a senhora vai ter que operar o coração. O exame mostrou que tá tudo entupido aí. Não tem mais como a senhora ficar desse jeito. Mas não se preocupa não, que depois da cirurgia a senhora vai ficar com um coração novinho em folha. Vou chamar a enfermeira para fazer a internação da senhora”.

“Mas já Doutor?”

“Claro, quanto tempo a senhora acha que vai viver com esse coração assim? Tem que operar, e logo.”

A conversa no consultório do médico se dá mais ou menos assim. Como podemos observar é um diálogo que remete a uma urgência ao mesmo tempo em que aponta para a fragilidade da condição humana.

No contexto da cirurgia cardíaca somos confrontados a todo o momento com essas questões e consequentemente com a forte angústia suscitada diante disso. É sobre isso que debruçaremos nosso interesse nesse trabalho.

O coração é um órgão vital, centro motor de circulação do sangue e a suposta sede das paixões, sentimentos, amor e afeto. Nossa sociedade encarregou-se de mistificar esse órgão, sendo o mesmo considerado como fonte de vida e sendo assim qualquer problema que o afete é sentido como uma grande ameaça.

São características fundamentais do setor de Cirurgia Cardíaca do Hospital Universitário Pedro Ernesto a gravidade e a urgência dos casos, tanto dos atendimentos como das intervenções cirúrgicas. É importante ressaltar que apesar de apresentarem sinais e sintomas semelhantes, que se enquandram numa mesma categoria diagnóstica, cada paciente vive sua passagem pelo setor de forma absolutamente singular.

O hospital é um território onde o saber médico se apresenta de forma hegemônica. Um discurso que filiado a tradição cientificista tende a produzir o apagamento de todas as variáveis que escapem aos ideais de conhecer para prever, prever para controlar. Propõe-se como saber totalitário onde aquilo que não cabe no discurso é excluído, banido de qualquer legitimidade.  Aparece como um saber biolozigante e hospitalocêntrico. Porém, a falha no discurso médico está justamente em sua pretensão de completude, e é a partir daquilo que falha, que escapa, que o psicanalista é, muita vezes, chamado a intervir.  

Além de um trabalho mais específico de pré e pós operatório, a nossa atuação se dá, principalmente, no acolhimento das angústias do paciente facilitando a nomeação e elaboração das sensações suscitadas pela condição de estar doente e hospitalizado. Na tentativa de ultrapassar a abordagem organicista, o psicanalista sustenta a dimensão subjetiva. A partir da oferta da escuta se propõe a tratar um outro tipo de urgência, a urgência subjetiva.

Moura (2000), em seu artigo Psicanálise e Urgência Subjetiva, diz que a urgência se caracteriza pela dificuldade do paciente em sustentar sua dimensão de sujeito, tamanha a perplexidade diante dos distúrbios orgânicos que o acometem.

No hospital, além de estar exposto a procedimentos clínicos e cirúrgicos invasivos, o paciente está deslocado de seu convívio familiar, de seus hábitos de vida, de sua rotina diária. Assim, ele fica destituído das referências que o apóiam enquanto sujeito podendo passar rápido e facilmente a condição de objeto.

“Não agüento mais ficar aqui. As pessoas são legais e eu sei que fazem tudo que podem, mas eu não agüento mais. Se é pra esperar por que é que eu não posso esperar na minha casa com a minha família, as minhas coisas?”. Relata uma paciente de 64 anos após 4 meses de internação hospitalar.

Distante de suas referências simbólicas, o sujeito vê vacilar também suas certezas, ficando imerso numa angústia insuportável. “Quando uma pessoa se vê perdida, após uma queda, um diagnóstico, um acidente, puxa-se o tapete onde o sujeito se sustentava, e lança-o no caos. É o momento de uma destituição selvagem” (Moura, 2003, p.28).

O adoecimento e a internação configuram-se como um momento de crise em decorrência da iminência de morte, lançando o sujeito num estado de desamparo, fragilidade e impotência. O conceito de desamparo é abordado por Freud para designar o despreparo biológico e psíquico da criança ao nascer, sendo esta totalmente dependente do Outro para sua sobrevivência. Para Freud (1895) o desamparo é aquilo que revela a dependência do sujeito em relação ao seu semelhante para viver.

O paciente internado parece reviver esse estado de desamparo. Impotente e passivo, ele fica dependente do outro para suprir suas necessidades. Tornando-se ainda mais fragilizado. O desamparo diante da perda da condição de saudável denuncia a ilusão de completude e de eternidade, afirmando a finitude. Desse encontro com o limite da condição humana pode vir a surgir a angústia, por vezes, insuportável, evidenciando uma insuficiência de recursos psíquicos para lidar com esta situação.

“Me sinto no corredor da morte, esperando que apontem pra mim e digam que é a minha vez”. É o que nos revela um paciente. Diante do ‘horror’ do diagnóstico que recebera e do caos em que se sentiu lançado evidencia seu medo e desamparo frente a iminência da morte.

O paciente acometido pela desordem orgânica, em particular a cardíaca, vive o limite, a perda, no próprio corpo, confrontando-se de forma radical com sua fragilidade de sua condição humana. Frente à impossibilidade de representação da própria morte no inconsciente, apontada por Freud, é somente a partir da perda que o homem se vê confrontado com a própria finitude. A partir da perda o sujeito vê vacilar todo seu investimento na vida. E no hospital, isso se faz presente de forma intensa e radical.

A idéia de perda é fundamental para que se possa compreender a noção de castração, que é central em Psicanálise. Segundo Rinaldi (1995), Freud ao afirmar, que no inconsciente, não há representação da morte, irá se valer da noção de castração, para se referir, por exemplo, a perda do seio da mãe na experiência do desmame. Para ele, a angústia de morte, é na verdade, a angústia de castração diante da perda, da separação (idem).

Sendo assim, Freud procura demonstrar que o medo da morte é análogo ao medo da castração. Esse medo antigo e infantil está relacionado à separação da mãe protetora, indica à angústia do nascimento acoplada ao desamparo primordial do bebê humano, na insuficiência de suas funções. E remete a dependência de um outro que possa cuidar dele.

Segundo Nazio (1997), a experiência inconsciente da castração é incessantemente renovada ao longo da existência e um dos objetivos da experiência analítica seria possibilitar e reativar na vida adulta a experiência que atravessamos na infância que é admitir com dor que os limites do corpo são mais estreitos do que os limites do desejo.

O CTI é o setor do hospital que comporta a máxima do limite entre a vida e a morte, e nos remete a outros limites, como os limites do simbólico, daquilo que pode ser nomeado e do que não encontra nomeação possível. Neste sentido, começamos a nos questionar, o que era possível fazer frente a angústia suscitada diante do adoecimento e de uma internação de urgência em um CTI cardíaco?

O termo angústia para a Psicanálise, diz respeito, a “uma energia não passível de escoamento” (Freud, 1925), ela se revela como não passível de nomeação, por um excesso no aparelho psíquico que fica impossibilitado de reagir.

Em Inibição, Sintoma e Angústia (1926) Freud se questiona sobre o que seria realmente a angústia. Coloca que a angústia é algo que se sente, um estado afetivo com caráter acentuado de desprazer. Podemos pensar a angústia, afirma o autor, “baseada em um aumento de excitação que, por um lado, produz o caráter de desprazer e, por outro, encontra alívio através dos atos de descarga” (Op.cit.p.156). O que Freud traz como uma das questões mais importante neste texto é o fato de que “a angústia surge originalmente como uma reação a um estado de perigo e é reproduzida sempre que um estado dessa espécie se repete” (idem, p.157).

No contexto do setor de Cirurgia Cardíaca do HUPE, a urgência se contrapõe com a espera. A espera pelo procedimento cirúrgico seja pela falta de material ou pela falta de recursos do hospital é comum e freqüente. Dessa forma, a internação dos pacientes que deveria durar uma média de sete a oito dias, acaba se arrastando por meses, o que contribui bastante para elevar o nível de angústia dos pacientes. Neste momento o sujeito se depara e revive a cada dia a angústia de morte e a fragilidade da sua condição humana. É comum encontrarmos referência a isso nas falas dos pacientes. E é possível observar como a espera vai se tornando a cada vez mais insuportável.

“Se o meu coração é como uma bomba-relógio, o que é que eu estou esperando aqui? Explodir?” Relata uma paciente com um ‘estado de saúde grave’ internada há dois meses.

“Não suporto mais esperar... Uma hora dizem que é por falta de material, outra é que ainda não decidiram o que irão fazer comigo. Espero que decidam logo, tenho sentido muita falta de ar, tenho medo de morrer aqui.” Nos conta outra paciente.

“Quantas limitações por causa do meu problema cardíaco, isso não é vida. Não suporto mais esperar. Tenho medo de não aguentar.”

Em situações de urgência, o sujeito se encontra na posição de objeto, sem autonomia, às vezes destituído de sua própria identidade, lançado ao estado de desamparo fundamental, vivido nos primórdios da vida (Moura,1996).

Com o longo tempo de espera relatos como o do Seu João1 vão ficando cada vez mais freqüentes. É assim que ele nos conta sua experiência: “A gente vem pra cá, cria uma expectativa... fica esperando... é uma cirurgia no coração e não uma unha encravada... o tempo vai passando e nada... isso deixa a gente chateado, tenso, nervoso... eu estava confiante, mas já nem sei mais se vou sair vivo daqui...”

Esta perda do sentimento de onipotência, muitas vezes faz com que lance mão de mecanismos de defesa com maior intensidade com o objetivo de manter o eu afastado da ameaça.

As reações dos pacientes irão variar de acordo com cada subjetividade sempre no caso a caso da clínica. Há pacientes que ficam mais tristes, chateados, passam o dia todo na cama; outros que ficam mais ansiosos, agitados, ou até agressivos. Cada sujeito vai significar o processo de adoecimento e hospitalização de acordo com sua história pessoal.

Segundo Moura (1996), o sujeito de início se oferece em silêncio e tem por horizonte a passagem ao ato e sai da urgência quando consegue produzir algum significante que o liga como sujeito.

“Estou na espera de uma vida melhor, sem dor, sem sofrimento”, nos relata um paciente. Aqui podemos perceber como o sem sentido do vivido só adquire significação quando o sujeito é capaz de dar-lhe cor e situá-lo na sua própria cadeia significante. Conforme Hanna e Souza (2005), o que um analista pode fazer diante da angústia de seus pacientes é ajudá-los “a continuar a levar as coisas adiante, levar as coisas além do limite da angústia” (p.28).

Por isso, acreditamos ser fundamental que o analista através de sua escuta permita que o sujeito possa falar de sua dor, de seu sofrimento apostando que assim, de alguma forma, seus sentimentos possam ser nomeados e ele possa criar maneiras de lidar com sua angústia, trabalhando no sentido de extrair novas direções e possibilidades diante de sua perda.

 

Referências Bibliográficas

FREUD, S. (1985) Projeto para uma Psicologia Científica. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

________. (1915) Reflexões para os tempos de guerra e morte. Op. Cit., vol. XIV.

________. (1923) A organização genital infantil. Op. Cit., vol. XIX.

________. (1926) Inibição, sintoma e angustia. Op. Cit., vol. XX.

HANNA, M e SOUZA, N. O objeto da angústia. Rio de Janeiro. Ed. 7 letras, 2005

MANNONI, M. O nomeável e o inominável – a última palavra da vida. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1995.

MOURA, M. D. “Urgência subjetiva e tempo – o que é isto?” In: MOURA, M. D. (org) Psicanálise e Hospital – 3: Tempo e morte – da urgência ao ato analítico. Rio de Janeiro: Editora Revinter, 2003.

MOURA, M. D. “Psicanálise e urgência subjetiva” In: MOURA, M. D. (org) Psicanálise e Hospital. 2. edição. Rio de Janeiro: Editora Revinter, 2000.

NAZIO,J “Liçoes sobre os sete conceitos cruciais da psicanálise”. Rio de Janeiro:Jorge Zahar. Ed. 1997.

RINALDI, D. “Morte e subjetividade” In: Anuário Brasileiro de Psicanálise. Relume Dummará, nº 3, p. 79, 1995.

 

 

Notas

* Trabalho realizado no CTI Cardíaco do HUPE, sob supervisão da Profª Sheila Orgler.

**Residente do primeiro ano de Psicologia Clínico-Institucional – IP/HUPE/UERJ

*** Residente do segundo ano de Psicologia Clínico-Institucional – IP/HUPE/UERJ

1 Nome fictício