ARTIGOS

 

 

Construindo um Trabalho: O Olhar da Equipe de Cirurgia Cardíaca Sobre a Reunião Multidisciplinar*

Ana Beatriz Raimundo de Castro**

Cristiane Bueno Iatauro***

 

 


O trabalho no serviço de Cirurgia Cardíaca é repleto de especificidades, que marcam a rotina dos profissionais por uma serie de atendimentos intensivos, uma constante tensão e apreensão frente à gravidade dos casos e a possibilidade iminente de morte, como também frente a angustia e ansiedade dos pacientes e seus familiares.

Diante de tal contexto o trabalho da psicologia vai além dos atendimentos aos pacientes e a seus familiares, buscando atuar também com a equipe. Sendo assim, há oito anos foi criada a reunião interdisciplinar, a partir da demanda de alguns membros da equipe de enfermagem à psicologia, que desde então, tem coordenado e sustentado essa reunião.

A reunião foi pensada como um espaço de trocas entre a equipe do serviço de cirurgia cardíaca, no qual esta pudesse compartilhar e analisar as questões que perpassam a instituição.  Porém, percebemos que desde seu inicio esta reunião tem movimentos de esvaziamento e presença, que sempre nos coloca a questão sobre o seu funcionamento e utilidade para esta equipe.

A psicologia, mesmo nos momentos de esvaziamento, assume uma postura de manter a reunião, num esforço de que a equipe possa se apropriar deste espaço e fazer uso dele. Assim, diante das demandas dos profissionais do serviço de que a reunião seja mais atrativa e interessante, sempre estamos nos esforçando para pensar o que propiciou o esvaziamento e tentando modificar a dinâmica da reunião. Entretanto, a presença da equipe continuava escassa, fato que muitas vezes nos causava cansaço e desânimo.

Neste contexto, começamos a pensar se nossa urgência em atender a demanda da equipe não estava nos impedindo de entender e escutar o que esta estava falando. Estávamos realmente conseguindo nos aproximar da equipe ou nosso desejo de que a reunião funcionasse estava dificultando que percebêssemos os movimentos institucionais? Esta era a nossa principal indagação.

A partir do referencial da Análise Institucional fazemos uma distinção entre instituição e estabelecimentos. Sendo os estabelecimentos os conjuntos prático-concretos organizados para determinados fins, estes são “os locais geográficos onde se atualizam diferentes instituições” (COIMBRA, 1995, p.59). Diferente destes, a instituição é o conceito que explica o modo pelo qual se produzem e reproduzem nas organizações de grupo, as formas predominantes das relações sociais.

Assim, escutar e perceber os movimentos circulantes nesta instituição implica em fazer uma análise dos processos de institucionalização, de reconhecimento de novas normas.  Processo esse que supõe uma relação de oposição entre as formas instituídas, naturalizadas e fixadas na instituição e as forças instituintes, as linhas flexíveis e necessidades de criação de novas normas. Atentando-nos para o fato de que ao reproduzir as instituições, o instituído nega a ação de instituinte, produzindo um efeito de esquecimento de sua própria origem.

“Ao esquecer as origens do instituído este é tomado como natural, quando na verdade é produto de uma história, que fica oculta. Explicitar isto que está oculto, produzir um estranhamento sobre aquilo que está naturalizado é um trabalho difícil, mas que deve ser realizado constantemente.” (CASTRO, A.B.R.; DONATI, T.D.; FIDELIS, R.O. 2007, p.105).

Assim, para tal, cabe-nos colocar em análise a demanda da equipe, entendendo que há uma diferença entre a “demanda oficial”, formal, e a “demanda implícita” que se encontra nas entrelinhas da demanda oficial (Lapassade et al, 1973,p. 260), escutando então, a polifonia da demanda.

Para Lourau, na Análise Institucional trata-se de descobrir, em toda organização, a ação do instituído. Cabendo-nos, assim, colocar em análise também a nossa implicação e pensar o que estamos (re) produzindo neste processo institucional. Indagar o que estamos produzindo neste movimento de atender prontamente toda e qualquer solicitação, de mudança no formato da reunião, que a equipe do serviço nos dirige, torna-se essencial para podermos perceber melhor os movimentos institucionais e, a partir daí, podermos sustentar melhor este espaço institucional de trocas entre a equipe.

“O que quer a análise institucional? Em primeiro lugar, o que a movimenta, o que a coloca em processo não é a vontade de atingir uma verdade, mas a vontade política de produzir novos problemas, a vontade de invenção.  Neste sentido, é necessário multiplicar ao máximo a implicação, utilizá-la no plural, descolá-la da totalização individual, pulverizá-la em singularidades pré- individuais. Para que isto aconteça é preciso colocá-la em análise, decompor seus elementos, misturá-los entre si, em várias composições possíveis e inéditas. ‘Análise das implicações’ é uma expressão operacional estreitamente articulada a outro conceito operacional : o de transversalidade.” (BARROS,R.G.B.; LEITÃO, M.B.S.; RODRIGUES, H.B.C., 1992,p. 12/13).

Segundo Coimbra (1995), a transversalidade é como uma superação à verticalidade (as relações sociais institucionalizadas e hierarquizadas) e a horizontalidade (relações imediatas, não mediatizadas pela instituição), sendo fundamental para que haja mudança na forma de relacionamento nas práticas institucionais um aumento dos graus de transversalidade.

Diante deste contexto, resolvemos realizar uma pesquisa com os profissionais da cirurgia cardíaca, numa tentativa de entender como os mesmos compreendiam a reunião de equipe. Nossa aposta era que tal pesquisa pudesse funcionar como um analisador, isto é, como um dispositivo capaz de explicitar os conflitos existentes na instituição, propiciando, assim, a explicação e resolução dos mesmos.

Passaremos ao relato da pesquisa realizada com a equipe do serviço de Cirurgia Cardíaca.

A Pesquisa

Objetivos: entender como os profissionais do serviço de Cirurgia Cardíaca compreendem a reunião de equipe. Repensar a partir dos olhares dos profissionais do serviço a estrutura e a dinâmica das reuniões de equipe.

Metodologia: Com o fim de atingir nosso objetivo, foi elaborado um questionário aberto com três perguntas, que foi entregue aos funcionários e depois depositados por este em caixas que disponibilizamos no serviço. Assim como também observação participante e a realização de um estudo bibliográfico.

Amostra:A nossa amostra se constituiu de 19 profissionais do serviço de cirurgia cardíaca, sendo de aproximadamente 42% de técnicos de enfermagem e 58% de outros profissionais (médico; enfermeiro; fisioterapeuta e sem definição).

Total: 19 questionários respondidos

Categorias profissionais:

Resultados:

Primeira questão: O que você acha que é a reunião de equipe? Na sua opinião, ela serve para quê?

Respostas:

Segunda questão: Você costuma participar dessas reuniões?

Respostas:

Em caso negativo ou positivo, explique o porquê?

Respostas positivas:

Respostas negativas e às vezes:

Terceira questão: O que você espera da reunião de equipe? Por favor, faça suas críticas (construtivas!) e dê suas sugestões.

Respostas:

Analise dos resultados:

A partir das respostas obtidas nos questionários, pudemos perceber que   os profissionais definiram como sendo função da reunião de equipe prioritariamente possibilitar a interação na equipe, melhorar o relacionamento interprofissional, ser propiciadora de trocas entre os profissionais, discutir casos cínicos, esclarecer dúvidas sobre o quadro clínico dos pacientes, assim como fazer circular as informações do serviço.

Apenas 32% da nossa amostra diz freqüentar as reuniões de equipe, 37% diz não freqüentar, 26% diz freqüentar às vezes e 5% não soube responder. Os profissionais que freqüentam as reuniões deram como justificativa para sua participação a intenção de melhorar a união da equipe, de melhorar os atendimentos aos pacientes, crescer como profissional e discutir e escutar assuntos relevantes. Já os profissionais que não freqüentam a reunião ou freqüentam às vezes deram como justificativa a dificuldade de conciliar os horários, a cobrança do setor, falta de costume e a falta de propósito e sentido da reunião.

Percebemos que os profissionais esperam que a reunião traga mais integração para a equipe (espírito de equipe), assim como sigilo e respeito.  Sugeriram para o funcionamento da reunião: apresentações de trabalhos e temas relevantes para o serviço, mais objetividade e novas estratégias de funcionamento (como dinâmicas), que esta seja um momento de discussão dos casos clínicos do serviço (round), que aborde temáticas como solidariedade, união e troca de informações, que esta tenha horários mais flexíveis e aconteça em mais horários. Estes esperam também um maior compromisso dos funcionários, maior presença na reunião e um maior desempenho dos profissionais.

Discussão / Conclusão:

A partir da análise dos resultados, percebemos que na instituição existem poucos espaços de trocas e de discussões, tanto dentro das categorias profissionais, como na equipe do serviço de Cirurgia Cardíaca.  Espaços esses que pensamos como cruciais para que haja uma maior comunicação e conectividade na equipe e um aumento dos graus de transversalidade, que como vimos, é fundamental para que possam ocorrer mudanças nas formas instituídas e na estruturação do serviço.

Como bem nos aponta Benevides (2005) há uma inseparabilidade, nas práticas de saúde, entre cuidar e gerir. Estes são indissociáveis.  Assim, o cuidado e a assistência ao paciente dependem da articulação do serviço e da conectividade entre a equipe, assim como também entre esta e os pacientes.

Com a escassez destes espaços de comunicação entre a equipe, há uma demanda para a reunião interdisciplinar (um dos únicos espaços de encontro e discussão da instituição) e para o serviço de psicologia, para dar conta de todos os espaços que a equipe acha necessário ter na instituição, como: um espaço de discussão e produção científica, um espaço de integração da equipe, um espaço de fala e escuta para as questões pessoais dos profissionais, um espaço para discutir os problemas ocorridos nos plantões, um espaço de confraternização, um round clínico, um espaço para a equipe resolver todos os problemas institucionais, tirar dúvidas e relaxar.

Com a realização desta pesquisa pudemos perceber que há uma convergência entre o que a equipe acha que é a reunião e o que esta espera de uma reunião de equipe. Há também uma queixa por esta não funcionar de modo a suprir todas as necessidades de comunicação da equipe, motivo pelo qual esta muitas vezes é tida como um espaço incompleto e sem sentido.

Deste modo faz-se necessário podermos marcar para os profissionais que esta reunião de equipe não pode ser o único espaço de comunicação e encontro dentro do serviço, como também podermos sair desta posição de tentar cobrir todos os furos institucionais e dar conta de todas as necessidades da equipe. É de extrema importância marcar a especificidade da reunião como um espaço para serem discutidas as questões que estão mais urgentes para esta equipe, sem pretender esgotar ali a discussão.

Assim, a reunião funciona no serviço como um dos poucos momentos em que alguns vetores circulantes na instituição podem ser colocados em análise e como um trabalho no plano micropolítico que, de forma bem gradual, vem possibilitando mudanças.

 

Referências Bibliográficas

BARROS, R.B.; PASSOS,E. Humanização na saúde:Um novo modismo?. In: Interfece- Comunicação, Saúde, Educação. São Paulo, V.9, N. 17, p. 384-394, 2005. Referências adicionais; Brasil/Português; Meio de divulgação: Impresso; ISSN/ISBN:14143283.

BENEVIDES,R. A Psicologia e o Sistema Único de Saúde: Quais Interfaces? Versão revisada do trabalho apresentado no V Fórum Social Mundial, Porto Alegre, 2005.

CASTRO, A.B.R.; DONATI, T.D.; FIDELIS, R. O. Trabalhando em Equipe e Trabalhando a Equipe: Limites e Possibilidades da Inserção da Psicologia na Equipe multidisciplinar. In: Revista Práxis e Formação: As Várias Modalidades de intervenção do Psicólogo, Instituto de Psicologia/UERJ. 2006/2007, p. 104- 111) 

COIMBRA, C.M.B. Os Caminhos de Lapassade e da Análise Institucional: Uma empresa possível? In: Revista do Departamento de Psicologia- UFF, Niterói, V.7-N.1. 1995, p.52-80.

GUATARRI, F. Introdução a Psicoterapia Institucional. In: Tempo Brasileiro, 35, 1973, p. 72-86.

LAPASSADE, G. Análise Institucional: Teoria e Prática. Revista de Cultura Vozes, N.4, 1973.

LAPASSADE, G. As Instituições e a Prática Institucional. In: Grupos, Organizações e Instituições. RJ: Francisco Alves,1977.

LOURROU, R. Análise Institucional e a Práticas de Pesquisas. RJ: UERJ, 1993.

RODRIGUES, H. de B. Conde; SOUZA, V. L. B. A Análise Institucional e a Profissionalização do Psicólogo. Em V.R. et Saidon, O. Análise Institucional no Brasil. RJ: Rosa dos Tempos, 1992

 

 

* Trabalho realizado no serviço de Cirurgia Cardíaca, sob a orientação da psicóloga Sheila Orgler.

** Residente do segundo ano de Psicologia Clínico-Institucional- IP/HUPE/UERJ.

*** Residente do segundo ano de Psicologia Clínico-Institucional- IP/HUPE/UERJ.