ARTIGOS

 

 

Implicações subjetivas de uma gestação de alto risco*

Renata Fidelis**

 

 


Este trabalho tem como objetivo refletir sobre o impacto causado por uma gestação, considerada de alto risco, em pacientes acompanhadas no setor de pré-natal. O ambulatório de pré-natal no HUPE é voltado para casos que envolvem risco gestacional em geral. Sabe-se que a gestação, sendo de alto risco ou não, é um período de muitas mudanças físicas e psíquicas para a mulher, provocando angústia, em muitos casos. No entanto, cabe a seguinte questão: o fato da gravidez apresentar esta classificação traz um aumento da vivência de angústia? Não há como encontrar uma resposta geral para esta pergunta, pois ela só pode ser respondida no particular de cada caso.

No acolhimento, momento em que o serviço recebe as gestantes, muitas delas nos dizem que se assustam quando recebem a definição de que sua gestação é de risco. A pergunta, “estou correndo risco de vida?” é freqüente, mas chama a atenção uma pergunta que também aparece bastante: “mas, que risco é este?”. Serão apresentados alguns fragmentos de casos clínicos para ajudar a pensar nesta questão.

                       

A construção do lugar da criança no desejo dos pais

“Um filho é, inicialmente, o desejo de um homem, o desejo de uma mulher e do encontro desses dois desejos nascerá um terceiro desejo, desejo de vida que vai se encarnar no corpo do filho” (Szejer, p. 54, 1997).

São importantes as considerações de Szejer quanto à necessidade da inscrição do filho no desejo dos pais. No entanto, cabe considerar que ser mãe, ser pai e desejar um filho não é algo natural, mas construído na história de cada um. A possibilidade da construção de um lugar psíquico para a criança e que lugar será este vai depender da história dos pais e de como ela é re-vivenciada e do momento da gestação.

Há necessidade da construção de um projeto de ter filho para que se construa um lugar para este filho no desejo dos pais.

“Do encontro de dois desejos, o do homem e o da mulher vai nascer um projeto. E esse projeto, seja ele consciente ou não faz parte da pré-história do filho(...). Seja qual for a configuração, essa origem marcará a criança e fará parte de sua história. Isso porque essa origem está inscrita no inconsciente parental como uma verdade concernente a esta criança.” (Szejer, p. 55, 1997)

A forma que esta “pré-história” irá marcar a criança depende de cada contexto e só podemos falar algo sobre estes antecedentes, a partir dos efeitos que eles possam causar.

A gravidez é um momento de reativação de conflitos infantis, algumas vezes exigindo um trabalho de elaboração psíquica. No ambulatório do pré-natal este trabalho se dá pela oferta de um espaço sustentado por uma escuta psicanalítica.

Uma jovem, grávida de seu terceiro filho, tinha dificuldades de dar um lugar para ele em sua família. Dizia que a culpa de ter ficado grávida era do médico que não quis lhe fazer uma laqueadura. Estava retomando os estudos e trabalho, quando engravidou. “Não podia ser em pior momento” (sic). Um de seus filhos era de uma primeira relação e a paciente considerava que o atual companheiro não dava atenção para este filho. Temia que isto fosse piorar com o nascimento de mais um filho, o que parecia ameaçar o lugar do primeiro. No início dos atendimentos foi associando este medo a um conflito com o seu primeiro companheiro, falando de como esta separação tinha sido dolorosa. Algo suscitado por esta separação precisava ter direção para que houvesse um investimento na relação atual e no filho fruto desta relação. Na medida em que se pôs a falar, foi sendo possível a construção de um lugar para o filho no desejo desta mulher. Aos poucos ela passou a nomeá-lo, aceitar ficar internada para não colocar a vida dele em risco e dizia: “Já que veio vou cuidar deste também.” Disse que não tinha desistido dos estudos, que seu companheiro e sua irmã iam lhe ajudar no cuidado com os filhos.

Uma outra paciente que apresentava um quadro de pressão alta, apresentou problema semelhante na primeira gestação (esta era a segunda). Durante um grupo de pré-consulta (grupo educativo realizado antes das consultas), onde o tema era violência, ela ficou muito mobilizada. Ao fim do grupo, sugeri que falasse comigo sobre o que a afligia. Ela disse que havia sofrido uma situação de violência sexual cometida por um colega de trabalho. Ficou muito tempo sem conseguir se relacionar sexualmente com o marido, disse ter tido “síndrome do pânico”. Culpava-se por não ter conseguido cuidar de sua filha nesta época. Nos atendimentos iniciais disse que não queria falar daquela situação de violência. Entretanto, precisou contar com detalhes o que tinha lhe acontecido. Parece que de alguma forma a gestação atual estava lhe fazendo revivenciar o momento de violência, do qual ela não tinha podido falar. Havia um temor de que não conseguisse cuidar direito de seu novo filho e repetia que não tinha planejado esta gestação, que tinha sido culpa de seu marido, não se incluía como desejando este filho. Em outros atendimentos trouxe um desentendimento com sua mãe, que lhe magoou muito, dizia que sua mãe preferia uma vizinha a ela. Algo sobre o desejo materno estava se colocando para ela. Chega numa outra sessão contando que colocou uma parte do nome composto de sua filha igual ao de sua mãe. Nos atendimentos pôde falar desta relação ambivalente com a mãe, falando que não entendia como a mãe poderia tratá-la mal justo no momento em que ela iria se tornar mãe novamente. A gestação iria reativar nas duas, mãe e filha, conflitos e rivalidades.

Uma paciente, Viviane (nome fictício), estava em sua segunda gestação e se questionava se conseguiria cuidar de seu filho. Relatava que no nascimento de seu primeiro filho quem lhe ajudou nos cuidados foi sua mãe. Tendo saído de sua cidade natal, mudando de Estado com o seu marido, temia não conseguir cuidar de seu filho sozinha. É interessante, pois de fato ela não estava sozinha: amigas se propunham a ajudá-la, o próprio marido também. Mas, para Viviane não era o mesmo que contar com a ajuda de sua mãe. Na outra cidade ela morava no mesmo terreno da mãe. Sair daquela configuração de família extensa não foi fácil. Temia fazer as coisas de modo diferente do da mãe, de modo “errado” (sic).

Em ambos os casos, não se tratava de uma primeira gestação, e podemos constatar que cada gravidez tem o seu próprio significado, dependendo do momento em que ela ocorre, momentos diferentes na vida do casal parental.

Durante a gestação são reativados conflitos infantis. A mulher é levada a modificar o lugar que ocupa em sua família. Há uma reorganização de sua identidade que muitas vezes exige um trabalho de elaboração desta nova posição, de filha para mãe. Ela passa a reviver histórias de identificações com sua própria mãe, bem como outras figuras maternas. Algo semelhante ocorre com o homem. Vínculos afetivos estabelecidos com os pais podem influenciar no modo como se constituirá o vínculo com seu filho. Entretanto, no trabalho realizado neste setor, é difícil encontrarmos homens mobilizados com a chegada de seu filho que queiram falar sobre isto. As mulheres vivem simbolicamente e no real do corpo profundas modificações. Disto decorre uma certa urgência em se ter um espaço de escuta, onde se propicie que o sujeito possa dar alguma direção a isto que é angustiante.

A sexualidade feminina

Pelo que foi visto nos casos clínicos, podemos notar que durante a gestação, a mulher se vê confrontada com questões sobre o que é “ser mulher” e o que é “ser mãe”.

Freud ao tratar em sua obra da feminilidade traça uma diferença com relação à como se dá o complexo de Édipo no menino e na menina. O pai institui uma primeira separação entre a mãe e a criança. Na saída do Édipo, o menino abre mão de uma relação incestuosa com a mãe e se identifica com o pai. Neste processo de separação com a mãe, a menina terá que continuar a procurar uma identificação feminina só podendo buscar isto junto à mãe. Quando a mãe não abdica nem de seu papel de mãe, nem do de mulher, a filha consegue encontrar apoio pra constituir a sua feminilidade, distinta da de sua mãe (Zalcberg, 2003).

Freud no desenrolar de seus estudos sobre a sexualidade feminina se dá conta de que negligenciou um aspecto muito importante:

“Dois fatos sobretudo me impressionaram. O primeiro foi o de que onde a ligação da mulher com o pai era particularmente intensa, a análise mostrava que essa ligação fora precedida por uma fase de ligação exclusiva à mãe, igualmente intensa e apaixonada... O segundo fato ensinou-me que a duração dessa ligação também fora grandemente subestimada... Na verdade, tínhamos de levar em conta a possibilidade de um certo número de mulheres permanecerem detidas em sua ligação original à mãe e nunca alcançarem uma verdadeira mudança em direção aos homens.” (Freud, págs. 233 e 234,1931)

A menina precisa renunciar à satisfação dirigida inicialmente à mãe, para poder se separar dela em seu processo de tornar-se mulher. A dificuldade neste processo de separação traz dificuldades para a mulher poder se relacionar com um homem.

A diferença anatômica dos sexos produz uma elaboração inconsciente para dar conta da impossibilidade de encontrar um símbolo para a sexualidade feminina: a dicotomia “castrado” e “não-castrado”. Não se trata da falta do órgão em si, mas da falta de um símbolo que represente o feminino. O modo com se atravessa o Complexo de Édipo depende da maneira como se lida com o complexo de castração. No menino, o temor da castração o motiva a abandonar os pais como objeto de amor. Já na menina, a ausência desta angústia de castração (já que não pode temer o que já ocorreu) dificulta a elaboração do Complexo de Édipo.

A menina hesita em reconhecer a falta na mãe, tendo dificuldade em aceitar que a mãe não lhe possa fornecer um símbolo de sua identificação feminina, este inexistente. A menina volta-se então para o pai, no sentido de receber do pai o que a mãe não lhe pode dar. Aceitar que esta demanda não pode ser atendida, seria para Freud, a saída para a verdadeira feminilidade.

Cada gravidez remete os pais a sua própria história, (re)ativando conflitos, o que muitas vezes vai exigir um trabalho de elaboração psíquica. Muitas mulheres percebem um sentimento contraditório em relação ao seu filho: ao mesmo tempo em que o desejam sentem este desejo ameaçado. Isto ocorre por conta da ambivalência, algo que é estrutural no ser falante, no sujeito dividido, que é movido, também por desejos e angústias inconscientes. Através de uma escuta analítica, algumas vezes é possível circunscrever a gestação na história do sujeito, dando direção para questões geradoras de angústia.

No trabalho com gestantes percebemos que há uma urgência de se trabalhar estas questões. A pergunta “que risco é este” deve ser considerada como se referindo a algo de ordem não somente orgânica, mas também psíquica, já que se trata de um momento de uma desestabilização do sujeito. O que aparece como urgência não é necessariamente algo relacionado às patologias orgânicas. Trata-se de uma urgência psíquica, onde vem à tona aquilo que está angustiando o sujeito em determinado momento e que precisa ser elaborado.

 

Referências Bibliográficas

FREUD, S. Sexualidade feminina. In: Obras Completas, V. XXI. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1974[1931].

Szejer, M.; Stewart, R. Nove meses na vida de uma mulher. Uma abordagem psicanalítica da gravidez e do nascimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.

Zalcberg, M. A relação mãe e filha. Rio de Janeiro: Campus, 2003.

 

 

Notas

* Trabalho realizado sob a orientação da psicóloga Susan Guggenheim.

** Residente do segundo ano do Curso de Especialização em Psicologia Clínico-Institucional - Modalidade Residência Hospitalar.