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Implicações Éticas e Exigências Institucionais: Confrontações na Enfermaria de Gestantes*

Juliane Almeida Chaves**

 

 


Introdução

Este trabalho baseia-se em nossa experiência na residência e tem como foco a enfermaria de gestantes do Núcleo Perinatal e nas práticas desenvolvidas em sua equipe multidisplinar.

O seu objetivo é, através dos conceitos de necessidade, demanda e desejo em psicanálise, colocar em análise os sentidos atribuídos aos ditos, enunciados pelos discursos que permeiam o espaço institucional e suas implicações no trabalho clínico. E de que forma o saber psicanalítico, que encontrou um lugar na cultura científica por se ocupar do que a ciência exclui, se insere neste espaço tendo como direção ética, o estar bem do sujeito.

A prática da psicanálise no espaço hospitalar, segundo Moura (1996), se depara com a coexistência de discursos diferentes e o desafio é sustentar a sua especificidade quando for possível, diante da demanda inespecífica, onde ainda não há demanda dirigida ao analista.

Lançarei mão, em seguida, de um caso clínico a fim de ilustrar e, portanto, nos aproximar do objetivo pretendido.

Caso Clínico.

A paciente Marta, 29 anos, 4º gestação, deu entrada na enfermaria de gestantes do Núcleo Perinatal do HUPE no dia 13 de maio de 2008, internada no leito 7, veio transferida da Maternidade Escola, com quadro de sangramento transvaginal sugestivo de Gestação Tubária à Direita, diagnóstico confirmado pela equipe de obstetrícia do Núcleo Perinatal, a fim de realizar uma cirurgia da prenhez ectópica. Acabava de sofrer um aborto espontâneo, data em que, segundo seu relato, soube que se encontrava gestante. Estava na 14º semana de gestação. Além do aborto, um teste rápido de HIV, realizado ainda na Maternidade Escola, havia dado positivo. HIV confirmado depois pelo teste específico e sobre o qual tinha decidido manter sigilo para a família.

Sua chegada ao hospital mobilizou a equipe que já se encontrava perturbada pela presença de “outra” paciente psiquiátrica, que estava sem seus documentos, sem identificação. Além dos rumores que já se ouvia pelos corredores da enfermaria, ela foi anunciada, por uma enfermeira à mim, representante no momento da equipe de psicologia, ao perguntar se havia alguma paciente que necessitava de uma atenção especial naquele momento, exato momento da internação de Marta, como paciente “bipolar”, seguido de um alerta: “Cuidado!”.

Marta se encontrava chorosa, já havia estabelecido contato com as companheiras de quarto, quando cheguei ao seu leito. Apresentei-me como psicóloga e nada mais foi necessário para que nesse primeiro momento ela me contasse a sua história, com todos os seus pormenores. Dizia ser filha de pai, que era cantor famoso, alcoólatra, ex-usuário de drogas - “todo tipo” que eu pudesse imaginar - que havia perdido toda sua fortuna cheirando pó. Na infância, sua casa era freqüentada por “todo tipo” de gente, que ia fazer “todo tipo” de coisas, levados por seu pai, algoz de toda a sua desgraça. Sua mãe era uma santa, que apesar de tudo sempre se manteve ao lado de seu pai.

Morava, há nove anos, sozinha em um apartamento dos pais na zona sul do rio. Não tinha profissão, tinha completado o ensino médio e pensava em fazer faculdade de direito, já havia iniciado alguns cursos de graduação, mas tudo que começava não conseguia levar adiante por causa de sua “depressão”. Todas as suas tias maternas eram “bipolar”. Falava de uma certa identificação com elas.

Dizia fazer uns quatro anos que não via seus pais, mas devotava grande amor e apresentava uma relação de dependência em relação à eles. Falava das saudades que sentia e, quando questionada sobre o tempo em que não os via, dizia não ter coragem de visitá-los, pois sempre que encontrava o pai brigava. Sentia muita vontade de abraçá-lo, mas jamais conseguia quando ele se encontrava próximo. Os pais, dizia, eram tudo em sua vida e o motivo pelo qual ainda permanecia viva.

Namorava há seis anos com um homem, separado e pai de uma criança, sobre quem, segundo ela, nada conhecia, nunca havia sido apresentada a sua família e dizia não fazer a menor questão. Aliás, era constante no seu discurso que nada importava, que tudo era uma grande palhaçada, inclusive a vida, que havia dado a uma irmã, uma santa, um câncer (CA de tireóide). Era ela que merecia, pois fumava muito, bebia, já havia usado “todo tipo” de drogas (afirmava estar em abstinência há dois anos), feito “todo tipo” de coisas, coisas sobre as quais ela não queria nem falar, nunca teve nada, apesar de que agora estava com HIV, “mais essa!”(sic), exclamava. Clamava pela morte, dizia que não ia se tratar, “pra quê?”. Já havia tentado suicídio tomando alguns comprimidos de um medicamento, que dizia não lembrar, mas foi salva por uma vizinha.

Filhos, não pensava em ter, “pra quê colocar mais gente nesse mundo” (sic), declarava já ter tido três abortos, sendo dois deles espontâneos ( há seis anos) e 1 induzido (há quatorze anos).

No decorrer dos atendimentos, todo o furor dramático com que apresentou a sua história inicialmente, e que a impedia de se quer ver-se em outro lugar que não o de vítima, foi cessando e ela pôde se colocar em posição de implicar-se em sua história como sujeito.

A partir desse novo posicionamento pode-se trabalhar a questão do seu diagnóstico, já fechado por ela e por conseqüência por toda a equipe da enfermaria, que a cristalizara em um lugar de paciente psiquiátrica “bipolar”. O que não era de conhecimento da equipe é que o seu tão enunciado diagnóstico havia sido dado por ela mesma e não poderia conter outro sentido que não o que ela mesma pôde atribuir. É fato que esta havia tratado de uma “depressão”, no Instituto P. Pinel, também não diagnosticada pelo médico, segundo seu relato, para a qual foi administrado lítio, tratamento interrompido por conta própria, pois segundo ela não estava adiantando nada.

Seu diagnóstico, “bipolar”, havia percorrido a seguinte construção: “Eu li uma vez em uma revista sobre bipolar e achei que tinha tudo a ver comigo”(sic). Quando perguntado o que tinha a ver com ela, disse: “Por exemplo, eu confio em uma pessoa e se esta trai a minha confiança, eu fico bipolar com essa pessoa... Eu tô bem, conversando, e do nada eu não consigo mais ficar bem com aquela pessoa.” (sic). A sua bipolaridade ainda pode ser usada contra a equipe, na medida em que não tinha controle sobre essa e, se sua mãe ficasse sabendo do HIV, ela iria concluir que foi alguém da equipe e não iria nem querer saber quem foi, “vocês não me conhecem, eu tô aqui bem, conversando, mas... vocês vão ver.” (sic)

Esse caso é ainda marcado por alguns pontos que afetam diretamente a equipe. Um deles é a necessidade de acompanhante relegado a casos específicos e no caso a explicação era o caráter psiquiátrico. O segundo ponto, é um evento em que as enfermeiras brincavam de round com o prontuário de Marta e se depararam com a necessidade de avaliação diagnóstica da paciente, colocando em questão o seu ser “bipolar”, diagnóstico sem fundamentação médica até o momento. O Diagnóstico (Transtorno Bipolar do Humor) estava presente em sua Ficha de Atendimento de Admissão do Núcleo Perinatal, em “outros diagnósticos clínicos”, e se apresentava repetido algumas vezes, se não escrito literalmente apresentava-se referido através de seu CID, na evolução de seu prontuário, por profissionais responsáveis por seus cuidados.

Tomaremos então esse caso para o estudo da necessidade, demanda e desejo em psicanálise, através dos conceitos de significante e de sentido, colocando em questão o poder simbólico que permeia os espaços institucionais em que o discurso científico é preponderante.

A idéia de uma ordem simbólica que estrutura a realidade interna humana foi salientada pelas ciências socias, particularmente por Lèvi-Strauss a partir do modelo da lingüística estrutural de Saussure. Para este o significante lingüístico tomado isoladamente não possui qualquer ligação interna com o significado. Strauss estende e transpõe esta concepção para o estudo de fatos culturais, de forma que toda cultura será considerada como um conjunto de sistemas simbólicos. Lacan, por sua vez, contraria a idéia de atribuir a um significante uma ligação fixa com um significado.

Ao colocarmos em análise o simbólico, registro que designa a ordem dos fenômenos que são estruturados como uma linguagem, em um ambiente institucional, em que o saber médico se sobrepõe historicamente aos outros campos do saber, não poderíamos deixar de considerar, portanto, a questão do poder simbólico que segundo Bordieu, “ (...) é, com efeito, esse poder invisível o qual pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.”1 Para a psicanálise, no entanto, a partir da leitura de Lacan, o simbólico não se aprisiona em um sentido. Sentido enquanto o que articula os significantes no dizer do paciente, o que o institui como sujeito.

Essas considerações colocam em cheque os lugares estabelecidos a priori em um ambiente institucional, quando estes de alguma forma se desestabilizam e podemos constatar através do olhar de indignação da equipe quando se vê enganada pelo discurso do sujeito, passivo corpo-paciente, assujeitado no leito, que sua onipotência não só é fugaz como pode ser objeto de manipulação do desejo do Outro. Como é o caso, por exemplo, de quando se deparam com o diagnóstico “bipolar”, sustentado pelo seu saber, interrogado.

Desta forma, poderemos considerar o posicionamento do saber científico, do saber do sujeito e do saber da psicanálise em relação à necessidade, à demanda e ao desejo.

A prática psicanalítica, segundo Quinet, “...é uma experiência da linguagem, uma prática da fala, e a prática médica lida essencialmente com o corpo”2 “(...) diferentemente do saber constituído trata-se de um saber a ser constituído e depositado na própria experiência analítica”3. O que nos mostra que, “...o inconsciente não é formado por signos, mas por significantes, ou seja, há rompimento entre significante e significado,...” 4. O que nos interessa, portanto, não é o saber universal, mas um saber particular.

Posicionaremos, a partir desta concepção, a medicina como funcionando no registro da demanda e a psicanálise no registro do desejo. O registro da demanda está implicado na dimensão da linguagem, da fala, através da qual as necessidades do homem entram em jogo. Necessidade como o que é da ordem do vivente, o que precisa no nível biológico, no nível da fisiologia.

A demanda, ainda a partir da leitura de Quinet, para a psicanálise, é sempre demanda de algo, ela não tem objeto próprio, ela é insaciável. A demanda, segundo Lacan, é o veículo do desejo inconsciente, “(...) Linguagem que escapa ao sujeito em sua estrutura e seus efeitos(...)”5(Lacan,1966, apud Quinet,1988), que está para além da consciência.

O desejo inconsciente “(...) Ele é propriamente falando, desejo de nada (...)”6 na medida em que “...o objeto que poderia satisfazê-lo é por definição um objeto perdido.”7. Esse objeto perdido é, portanto o objeto da psicanálise. E esta vem justamente “(...) revelar o inconsciente com seu saber que não sabe de si e que governa a vida do sujeito”8

Marta, ao estabelecer o seu diagnóstico, não imaginava nas implicações que seu discurso teria a nível institucional, mas falava de seu desejo. “A experiência psicanalítica demonstra que a demanda do sujeito nem sempre corresponde ao que ele deseja, sendo demanda e desejo muitas vezes antinômicas”9 (Quinet,1988:9).

Podemos ler o significante “bipolar”, no caso Marta, como representante da própria dimensão de sua ambivalência psíquica, que designa as ações resultantes de um conflito defensivo, que tem suas bases no conflito edipiano, em que entram em jogo motivações incompatíveis; visto que aquilo que é agradável para um sistema é desagradável para o outro, sendo a formação dos sintomas neuróticos concebida como uma tentativa de conseguir uma solução para tal conflito.

A nível institucional, o signicante enunciado pela paciente veio trazer a própria dimensão da castração para o saber que se acredita, Todo um ideal de Saber. Diferente do saber psicanalítico que é furado, marcado pela falta e que permite ao sujeito construir um saber que lhe concerne. E assim, a resposta a uma demanda no nível da necessidade, revestida pela necessidade de medicação psiquiátrica, de acompanhante, de cuidados especiais pode ser relativizada.

O trabalho da psicanálise visa implicar o sujeito em sua história, de forma que possa responsabilizar-se por sua causalidade psíquica no reconhecimento dos significantes de sua determinação, sendo assim, na sua possibilidade de desejar. E não de tamponar o buraco da falta que é inerente ao sujeito da linguagem seja ele médico, enfermeiro, paciente ou analista. Sobre a direção do tratamento, Freud [1913] já havia nos alertado ao dizer,

“(...)tem-se de ter cuidado em não fornecer ao paciente a solução de um sintoma ou a tradução de um desejo até que ele esteja tão próximo delas que só tenha de dar mais um passo para conseguir a explicação por si próprio.”

 

Referências Bibliográficas

Bourdieu, P. Sobre o poder simbólico. O Poder Simbólico, Rio de Janeiro: Bertrand, Brasil 2001.

Freud, S. (1969) Sobre o início do tratamento (J.O.A. Abreu, Trad.). Em J. Salomão (Org.), Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud ,Vol. XII, pp.162-188. Rio de Janeiro, RJ: Imago.p.183.

 Laplanche, J., & Pontalis, J. B. (2004). Vocabulário de psicanálise (P. Tamen, Trad.) (4a ed.). São Paulo: Martins Fontes.

MOURA, M. D. Psicanálise e urgência subjetiva. In: _____. (Org.). Psicanálise e hospital. Rio de Janeiro: Revinter, 1996. p. 3-20.

Quinet, A. O corpo e seus fenômenos, Papéis do Simpósio do Campo Freudiano, Belo Horizonte, 1988.

* Trabalho desenvolvido no Núcleo Perinatal, sob Orientação da psicóloga Dra. Ester Susan Guggenheim.

** Residente do primeiro ano da Residência em Psicologia Clínico – Institucional do IP/HUPE/UERJ.

1Bourdieu, P. Sobre o poder simbólico. O Poder Simbólico, Rio de Janeiro: Bertrand, Brasil 2001.p.7.

2 Quinet, A. O corpo e seus fenômenos, Papéis do Simpósio do Campo Freudiano, Belo Horizonte, 1988.p.12.

3 Idem. p.3.

4 Idem. p.4

5 Quinet, A. O corpo e seus fenômenos, Papéis do Simpósio do Campo Freudiano, Belo Horizonte, 1988.p.12.

6 Idem.p.12.

7 Idem. p.12.

8 MOURA, M. D. Psicanálise e urgência subjetiva. In: _____. (Org.). Psicanálise e hospital. Rio de Janeiro: Revinter, 1996. p. 4 e 5.

9 Quinet, A. O corpo e seus fenômenos, Papéis do Simpósio do Campo Freudiano, Belo Horizonte, 1988.p.9.