ARTIGOS

 

 

Uma Gestação Rotulada: Considerações Acerca do Diagnostico no Núcleo Perinatal do HUPE*

Ana Beatriz Raimundo de Castro**

 

 


O trabalho do psicólogo no hospital é peculiar, pois desde o século XVIII1 esta instituição é regida pelo saber médico, tendo como parâmetro atualmente, uma medicina baseada na imagem, na sintomatologia e no diagnóstico.  A reforma da medicina como teoria está relacionada com a reforma da medicina enquanto prática, estando intimamente ligadas à reforma hospitalar. Segundo Canguilhem (1966), tanto a reforma hospitalar como a pedagógica, exprimem uma exigência de racionalização, que levou ao que se chamou normalização.  

Canguilhem (1966), no livro “O Normal e o Patológico”, contextualiza historicamente a produção da normalização. E afirma que normal é o termo utilizado no século XIX, para designar o protótipo escolar e o estado de saúde orgânica. Este termo é importado da geometria para a ciência da vida.

Ao realizar uma pesquisa etimológica do termo, Canguilhem nos mostra que norma é a palavra latina que quer dizer por de pé, endireitar, retificar, aquilo que é reto, perpendicular e desviante.

Canguilhem chama de polêmico o conceito de normal, que qualifica negativamente o que não cabe em sua extensão, embora dependa de sua compreensão para se definir.  Assim, normar, normalizar, é impor uma exigência a uma existência, e excluir o que nela não se encaixa, agregando valor com base em um modelo ideal.            

Este autor traz a problematização que ocorre a partir do momento que se estabelece uma norma de precisão para a vida, que não é precisa, nem estável, e rompe com a tese de uma essência normal do organismo. Em confronto com os conceitos de normalidade e normalização, que trazem uma exigência de precisão, regularidade e reparo, Canguilhem trabalha com o conceito de normatividade vital.

A normatividade da vida é a capacidade de produzir normas, de criar as próprias normas a partir da singularidade do vivo, pois a vida não é indiferente às condições ao qual ela é possível. Assim, não é a vida que coloca o valor de normal, mas sim o olhar do especialista.

A partir da normalização é possível para as ciências biológicas produzir a categorização e os diagnósticos, e basear seus estudos e procedimentos primordialmente nestas definições. Fato que traz muitas implicações. 

Vieira (2001), ao pensar a questão diagnóstica, diz ser importante sua utilização para a comunicação e para a condução do tratamento.  Porém, alerta para o fato de que esta utilização não é sem conseqüências, pois todo diagnóstico é sempre um problema, é sempre uma categorização que incorpora o sujeito em uma classe.

Ao diagnosticar, trata-se, de inserir o sujeito em um grupo, definindo algumas propriedades que irão representá-lo, perdendo a dimensão singular de cada sujeito e produzindo diversos efeitos mortificantes.  E por mais que se busque preservar a singularidade, o diagnóstico é necessariamente um juízo de valor que insere o sujeito em uma classe.

Para este autor o diagnóstico deve ser tratado tanto como um “mal necessário quanto como um bem perigoso” (Vieira, 2001), que deve ser buscado mais nunca inteiramente alcançado. Pois o diagnóstico não é uma representação de uma categoria natural, fundada na descrição pura dos eventos, e sim uma nomeação que faz existir realidades e efeitos subjetivos. Assim o diagnóstico faz uma objetivação do sujeito, colocando-o rótulos segregadores. 

Lobo (1992), traz uma importante discussão sobre deficiência, prevenção, diagnóstico e estigma. E afirma que os diagnósticos, a pretexto de separar para tratar, exercem um poder de escolher quem está no interior da norma e quem dela se distanciou. Pensando qualquer diferença valorativamente, como algo que transborda da normalidade.

Simonetti (2004) nos ajuda a ampliar o conceito e a utilização do diagnóstico no contexto hospitalar, ao definir o conceito da “dimensão multiaxial” do diagnóstico. Sendo interessante dar ênfase à noção de “dimensão” utilizada pelo autor, pois está equivoca o diagnostico como uma totalidade.

Esta dimensão é dividida em quatro eixos, são eles: diagnóstico reacional (focaliza a posição que a pessoa assume em relação à doença); diagnóstico médico (apresenta o ponto de vista orgânico da doença); diagnóstico situacional (constrói uma visão panorâmica da vida do paciente, considerando as áreas que influenciam e são influenciadas pela doença: vida psíquica, vida social e vida cultural) e diagnóstico transferencial (avalia as relações que a pessoa estabelece a partir do adoecimento, como a pessoa se relaciona em meio a este).

Para este autor o diagnóstico permite o desenvolvimento da pesquisa científica, a comunicação entre os profissionais e auxilia no direcionamento do tratamento, mas este deve sempre ser tomado como uma hipótese e nunca como uma verdade absoluta.

Gostaríamos de marcar que não se trata neste estudo, de negar a importância da utilização diagnóstica no hospital, e sim de problematizar e repensar o uso que vem sendo feito.  Há uma diferença entre pensar o diagnóstico como um ponto de vista, como uma perspectiva, como mais um norteador para o tratamento e para a equipe, e pensá-lo como uma verdade única e absoluta.

Como bem nos aponta Nietzsche e Foucault, ao longo de suas obras, não há a “Verdade” primeira, que seja a-histórica e fora das relações, e sim, várias pequenas verdades que foram construídas historicamente. “As verdades são ilusões que nós esquecemos que o são(NIETZSCHE, 1875, 94).  Assim como, o conceito é uma metáfora que se cristalizou, um ponto de vista que se tornou a própria maneira de olhar.

”A verdade espécie de erro que tem a seu favor o fato de não poder ser refutada, sem dúvida porque o longo cozimento da história a tornou inalterável” (NIETZSCHE 1882 apud FOUCAULT, 1979, p. 19 ).

Passaremos assim, ao relato de uma situação clínica ocorrida no Núcleo perinatal do Hospital Universitário Pedro Ernesto. O Núcleo é composto por uma unidade de pré-natal e uma maternidade, para gestantes e puerperas de alto risco. A psicologia atua na maternidade oferecendo atendimentos a todas as pacientes que estão internadas e no pré-natal atendendo por encaminhamento ou demanda espontânea das pacientes.     

Luisa2 foi inserida no pré-natal do HUPE por hipertensão, já nas primeiras consultas mobilizou a equipe por sua história e foi encaminhada para atendimento com a psicologia, sendo recebida por mim.  Na semana seguinte esta foi internada na maternidade, também por causa da hipertensão, sendo dada continuidade dos atendimentos pela psicologia.

Luisa relatou que havia sido casada e estava separada há pouco mais de um ano.  E que sua gestação era fruto de um estupro, que tinha sofrido por parte de seu ex-marido. Fato que lhe causou bastante sofrimento e uma dúvida inicial se realmente iria levar a gestação até o fim.  Passado algum tempo, Luisa decidiu ter a criança, pois “ela não tinha culpa de nada que havia acontecido”.

Luisa havia realizado tratamento psiquiátrico ambulatorial por quinze anos, estando estável há bastante tempo. No entanto, este fato despertava na equipe do serviço um receio, em relação aos cuidados que Luisa teria com a gestação e com o bebê, após seu nascimento, visto que morava sozinha. Foi solicitado ao serviço de psiquiatria um parecer.  A psiquiatria afirmou que a paciente estava bem e estável, não havendo no momento nenhum problema, nem necessidade de acompanhamento pela psiquiatria.

Porém, a equipe da maternidade demandava da psicologia e da psiquiatria um diagnóstico fechado em uma categoria. Quando indagados pela psicóloga sobre a função deste diagnóstico, relatavam que “precisavam saber exatamente o que a paciente tinha, o que ela era, para assim poderem lida melhor com esta. E saberem exatamente quais seriam as atitudes dela”. Afirmavam que a paciente estava tranqüila e cooperativa, não havendo necessidade de medicação, mas que ainda assim precisavam ter um diagnóstico psicológico e/ ou psiquiátrico fechado.

Com a alegação de uma prevenção a saúde da paciente e do bebê a equipe pedia a definição de um nexo causal entre um diagnóstico de alguma “psicopatologia” e as atitudes da paciente. Para assim, poderem “prever” as atitudes da paciente e definir as condutas de tratamento, não levando em conta nenhuma marca subjetiva.  Num movimento que rotulava a paciente, aprisionado-a em uma categoria e produzindo estigmas.

“O estigma é então a realidade sofrida pela pessoa, conseqüência natural não só das práticas leigas da normalidade espalhadas pela sociedade, como de sua confirmação científica, dos saberes e das práticas profissionais especializadas”.(LOBO, 1992, p. 113).

Devemos assim, tomar cuidado com nossas práticas, enquanto profissionais da saúde, para não produzir normalizações e estigmas, a partir de uma norma padrão que tenha como parâmetro uma idealidade no campo da vida, onde a variação é entendida como desvio.

A psicologia deve atuar neste contexto, como possibilitadora de equívocos que escape das estigmatizações, devendo apontar para a equipe as implicações desta busca por categorização, por uma origem e um prognóstico, que deixa de lado e descarta tudo que é processo e singular.

Luisa queixava-se de alguns excessos de “atenção” da equipe. Sentia-se incomodada com tantas perguntas e olhares sobre ela, dizia que o tempo todo era um “entra e sai de pessoas da equipe em seu quarto para saber como ela estava”. Esta afirmava a importância do espaço de atendimento com a psicologia, pois podia falar destas e de outras questões relevantes para ela no momento, sem se sentir vigiada.

Luisa já estava no final da gestação e ficaria internada até o nascimento do seu bebê. Após o nascimento a equipe ficou ainda mais apreensiva com a situação. Diziam que a relação de Luisa com o bebê (que permaneceu internada no Berçário Intermediário, devido a uma infecção leve) era boa e que não havia nada que chamasse atenção, mas mesmo assim ficavam apreensivos, visto que havia sido paciente psiquiátrica e que a gestação era fruto de um estupro.

Com a melhora do bebê, a equipe se defrontou com a possibilidade de alta, fato que despertou ainda mais ansiedade, pois não queriam dar alta à Luisa. Novamente solicitaram à psicologia um diagnóstico, que pudesse prever como esta mãe cuidaria de seu filho. Com o intuito de ao diagnosticar, prevenir e assim ter um bom prognóstico.

Após escutar e acolher a angustia da equipe, a psicóloga interviu na direção de desconstruir junto à equipe, a idéia de que é possível conhecer melhor o sujeito e suas possíveis atitudes, apoiados em um diagnóstico, em uma categoria. Pois, “através do agrupamento de fenômenos em uma classe damos a conhecer um individuo, mas perdemos o sujeito” (VIEIRA, 2001, p.173). Trabalho que possibilitou a dissolução de algumas fantasias da equipe em relação à paciente e facilitou que percebessem como Luisa estava sendo cuidadosa com seu bebê (fato que estava completamente ofuscado pela busca diagnóstica) tornando possível assim, a alta.

A partir de trocas interdisciplinares sobre o caso, notamos que a equipe estava em busca de um diagnóstico que aplacasse suas angustias e que pudesse dar conta do imprevisível dos acontecimentos, buscando explicar e entender qualquer atitude a partir de um diagnóstico, fosse ele atual ou não. Percebemos como esta busca de categorização, de alguma forma, poderia funcionar como um aprisionamento de sentidos.

“Uma vez que fixar os contornos do eu equivale a aprisionar/ foracluir o sujeito e apagar o desejo, qualquer ação que tire suas coordenadas deste tipo de saber se desenrola no âmbito do automaton significante, eliminando o real acaso, a tyché” (Vieira, 2001, p.173).

O trabalho da psicóloga, neste caso, além de dar acolhimento e escuta à paciente em sua singularidade, para além de um diagnóstico e de uma categoria, foi também junto à equipe, que permitiu desconstruir a produção do diagnóstico como um rótulo.

 

Referências Bibliográficas

CANGUILHEM, G. O Normal e o Patológico (1966). 5º edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

LOBO, L. F. Deficiência: Prevenção, Diagnóstico e Estigma. In: RODRIGUES, H.B.C. (org.) Grupos coletivos e instituições em análise. Rio de janeiro: Rosa dos Tempos, 1992.

MALENGREAU, P. Para uma clínica de cuidados paliativos. In: Opção Lacaniana- Revista Internacional de Psicanálise, número 13, 1995. 

NIETZSCHE, F. A  Gaia Ciência (1882). São Paulo: Companhia das letras,2002.

NIETZSCHE, F.  O livro do Filósofo (1875). São Paulo: Centauro editora, 2004.

SIMONETTI, A. Manual de psicologia hospitalar: O mapa da doença. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.

VIEIRA, M. A. Dando nome aos bois, sobre o diagnóstico em psicanálise. In: Figueiredo, A.C. (org). Psicanálise- pesquisa e clínica. Primeira edição. Rio de janeiro: IPUB/UFRJ, 2001, V. 1, p. 171-181.

 

 

Notas

* Trabalho realizado no Núcleo Perinatal, sob orientação de Susan Gunggenheim.

** Residente do segundo ano de Psicologia Clínico-Institucional – IP/HUPE/UREJ

1 Foucault (1979) em “O Nascimento do Hospital” data do final do século XVIII a emergência do hospital na tecnologia médica como um instrumento terapêutico. Para maior aprofundamento no tema, ir ao autor.

2 Nome fictício.