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Quebra-cabeça: um caso de psicose na clínica psicanalítica com adolescentes*

Ana Maria de Souza Villardo**

 

 


Na clínica psicanalítica, norteada por Freud e Lacan, é fundamental estabelecer um diagnóstico diferencial entre neurose e psicose. A questão do diagnóstico só se coloca em psicanálise como função da direção da análise.

A partir da leitura de Freud, Lacan considera a psicose como uma estrutura clínica. Segundo Quinet (2006), ele a aborda como algo específico e determinado, e tanto quanto na neurose, tal determinação se dá a partir da linguagem, permitindo com que o próprio discurso do sujeito, sua posição frente ao Outro, nos norteie para levantar uma hipótese diagnóstica.

O caso clínico que iremos abordar é de um sujeito adolescente atendido no NESA – Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente –, cujas entrevistas preliminares, na tentativa de construção de uma hipótese diagnóstica, nos levaram a uma provável estrutura psicótica.

Caso Marcela:

Marcela, como escolhi chamá-la, é uma adolescente de 15 anos de idade que chega ao NESA trazida por sua mãe, encaminhada ao Setor de Saúde Mental do NESA por uma neurologista do Núcleo. Segundo o laudo da neurologista, Marcela apresenta epilepsia associada ao retardo. Apesar do quadro bastante complexo implicado no laudo, Marcela nunca havia sido encaminhada a um Serviço de Saúde Mental, e nunca tinha sido avaliada por psicólogo ou psiquiatra.

Podemos pensar que essa dificuldade de encaminhamento a um serviço de Saúde Mental em casos como o de Marcela, acontece quando se faz uma aposta em uma organicidade, com a conseqüência do retardo que vela a estrutura do sujeito.

No retardo observamos que para além das questões orgânicas, há que se verificar a posição subjetiva do paciente assim diagnosticado pois, não raras vezes, se desvela uma estrutura psicótica, com a correspondente falta da metáfora paterna, conceituada por Lacan como dizendo respeito à psicose.

Inicialmente, a mãe vinha com a adolescente às entrevistas, de modo que, pude colher sua história na sua presença. Na primeira entrevista, a mãe relata procurar atendimento para a filha porque a considera “muito diferente, desde pequena” (sic). Segundo ela, Marcela apresenta dificuldade em se relacionar com as pessoas, quase não se comunica, diz ainda que acha “que a filha vive em outro mundo” (sic). Relata que além das dificuldades em se comunicar, Marcela apresenta dificuldades de aprendizagem e apesar de estar com 15 anos, ainda não conseguiu aprender a ler nem escrever.

Diz que o comportamento da filha é notado pela família toda e inclusive pela vizinhança, que fala que “Marcela tem mentalidade de uma criança de três anos” (sic). Preocupa-se também pelo fato de a filha às vezes falar e gesticular sozinha.

Marcela é a caçula de uma família de seis filhos. Segundo a mãe, os irmãos não têm paciência com Marcela e se ela deixa a filha em casa aos cuidados deles, “batem nela” (sic). Diz que por isso parou de trabalhar para se dedicar à filha, pois considera que Marcela precisa dela.

O pai de Marcela, segundo a mãe, é alcoolista e permanece fora de casa por muito tempo. Diz que não ajuda em nada, de modo que ela não pode contar com ele, muito menos na criação dos filhos. Fala, textualmente, que “ele é digno de pena”. Afirma que não suportar mais viver com esse homem e confessa nunca ter gostado dele. Diz que na época em que resolveu aceitar morar com ele, o fizera para fugir de sua casa,  lugar de muito sofrimento, pois sofria maus-tratos por parte de sua mãe que, por sua vez, também era alcoolista.

Fala que sua relação com o marido é inexistente, desde que Marcela nasceu ele dorme na sala e ela com Marcela na cama de casal. Justifica isso, dizendo que ele chega alcoolizado toda noite e ela não suporta ficar perto dele, além disso, diz que não pode deixar Marcela sozinha.

Podemos observar no discurso da mãe, que Marcela lhe serve para manter afastado o homem com quem foi viver sem nunca ter gostado dele, somente para fugir de casa, de maneira que, no lugar de o pai de Marcela funcionar como um terceiro que dialetizaria a relação da filha com a mãe, afastando uma da outra1, ao contrário, ele é que é mantido afastado por essa atitude da mãe. Além disso, é relevante o fato de essa mãe considerar que Marcela necessita dela, não podendo ficar sozinha, ou seja, como se ela não pudesse faltar.

Vários são os textos que nos norteiam quanto à conceituação que Lacan pode fazer da metáfora paterna e da inscrição do Nome-do-Pai. Conforme Nazar (2008), o Nome-do-Pai, enquanto significante da lei, rege o desejo, vindo em substituição ao Desejo-da-Mãe. Segundo Alberti (2004), “... para que o desejo da mãe possa alcançar algo que almeja é preciso que o sujeito tenha uma referência a um pai que pode relativizar, mediatizar e barrar o próprio desejo da mãe. Diz-se então que para esse sujeito o Nome-do-Pai se inscreveu no Outro que é primordialmente materno” (p.18).

Quando essa operação, da metáfora paterna não ocorre, o Nome-do-Pai fica foracluído do simbólico, o que, para Lacan, é a maneira pela qual se estrutura o inconsciente na psicose. Com a função paterna foracluída não há simbolização da separação primordial do sujeito em relação à mãe. Sendo assim, o psicótico não se liberta do Outro, ficando a mercê dos caprichos deste, sem nenhuma condição de se furtar ao lugar que o Outro lhe designa, justamente porque este Outro não é barrado pelo Nome-do-Pai. No caso de Marcela isso fica muito evidente quando lhe é designado, no discurso da mãe, o lugar de “rejeitada”.

Relata que na escola, segundo a professora, Marcela fica isolada, não interagindo com os colegas de turma. Na maioria das vezes é motivo de chacota na hora do recreio pelo fato dos colegas a considerarem “uma menina esquisita”. Perto de sua residência, diz que as adolescentes da idade da filha não fazem amizade com ela. Segundo a sua observação, “Marcela sempre gostou de brincar só. Parece não gostar de pessoas” (sic).

Na primeira entrevista, Marcela ficou todo o tempo mexendo com as mãos, com o olhar perdido e não disse sequer uma palavra. Na maioria das vezes, quando solicitada, não respondia, ou ficava repetindo uma palavra incessantemente. Não forma frases, não conta histórias, ás vezes falava em um tom inaudível, com muita rapidez, muitas vezes parecia estar conversando com alguém, demonstrava angústia e inquietação.

Em uma das entrevistas após a mãe se retirar da sala depois de relatar a dificuldade da filha em se relacionar com as pessoas, Marcela permanece por todo o atendimento repetindo a palavra “pessoas.”

Diante do seu discurso ininteligível, a enorme dificuldade em falar comigo e a angústia e o sofrimento que transparecia, me levaram a supor que estava diante de um caso de psicose. O comportamento relatado pela mãe do isolamento de Marcela e da dificuldade em se relacionar com pessoas corrobora com a nossa hipótese de que Marcela esteja posicionada fora do laço social.

Segundo Quinet, a posição estrutural do sujeito na psicose é a de ser objeto de gozo do Outro, seu objeto de uso, justamente porque o Outro do psicótico é absoluto. No relato da mãe, parece que não existe lugar para Marcela como sujeito. Para os irmãos ela é objeto de maus tratos. Para a mãe ela parece ser um objeto de impedimento às investidas sexuais do marido.

Ao mesmo tempo, pudemos verificar que a própria mãe de Marcela se identifica com esse lugar de “rejeitada” no qual inclui a filha. Ou seja, é um significante que a identifica na relação com sua própria família de origem, da qual resolvera fugir e, não fazendo qualquer diferença entre si própria e a filha, identifica a filha nesse mesmo lugar.

A mãe de Marcela em uma das entrevistas ao lado da filha, conta chorosa que foi rejeitada pelos irmãos por parte de mãe e por sua própria mãe. Quando a mãe de Marcela tinha 12 anos, sua mãe casou-se novamente, mas desta feita com um homem branco que discriminou a enteada por ela ser negra. Além disso, ela entende que o fato de seu pai ter traído sua mãe, levou a esta última - a avó de Marcela - a descontar na mãe toda a raiva que alimentava pelo seu pai.

Relata um episódio em que sua mãe chegou transtornada em casa, após ter ingerido grande quantidade de álcool e bateu nela com uma barra de ferro, “a quebrou em pedacinhos” (sic). Ficou hospitalizada e em coma por seis meses e relata ter perdido o “raciocínio” depois disso. Ela tinha 12 anos na época do ocorrido e desde então não consegue nem ler nem escrever.

Independentemente de todas as múltiplas histórias contadas pela mãe, Marcela parece alheia em todos os atendimentos, seu olhar fica perdido, ela quase não me olha.  Sua fala é muita baixa em um tom monocórdio e seu discurso é na maioria, por palavras soltas.

Muitas vezes parece estar conversando com alguém, fica mexendo com as mãos, demonstra inquietação e quando eu pergunto algo ela me ignora, como se eu não estivesse presente, não existe uma demanda, um endereçamento ao Outro. Na maioria das vezes, não reponde quando solicitada ou diz “não sei”. Seu discurso se mostra incoerente, apresenta neologismos, não conta histórias e não constrói frases. Podemos observar em uma das falas de Marcela assim que entra na sala, diante da pergunta: Como vai? Ela responde:

– Não! Não! A tia disse, ela disse, ela disse, disse, disse, “pétago” (sic). Depois começa a rir imotivadamente e se cala, com o olhar fixo na porta, fica mexendo com as mãos, demonstra angústia e sofrimento. Apesar de tentarmos estabelecer algum contato com Marcela nesse momento, ela emudece.

Lacan nos fala que uma das marcas da psicose seriam os distúrbios de linguagem e identifica alguns fenômenos que testemunham a separação radical entre significante e o significado, como neologismos e fenômenos em que o vazio da significação predomina, ou seja, um significante aparece isolado e sem sentido algum.

Segundo Quinet, normalmente o Nome-do-Pai se inscreve no Outro inaugurando a simbolização, e ao contrário, a foraclusão do Nome-do-Pai na psicose corresponde no sujeito à abolição da lei simbólica. Com a conseqüência desta foraclusão, da não simbolização da castração, percebe-se uma ausência de metaforização que impossibilita o psicótico de se estabilizar no discurso, ele fica situado fora dele. Diz Quinet ( 2006, p.16):

Sendo o Nome-do-Pai o significante que permite ao sujeito entrar na linguagem e aí articular sua cadeia de  significantes, a não inscrição desse significante no Outro acarreta aquilo que é  para Lacan a marca essencial da psicose: os distúrbios de linguagem e, em particular: a alucinação”

Em uma das poucas vezes em que Marcela efetivamente falou comigo, ela pede para jogar algo. Diante da pergunta jogar? Ela diz “quebra-cabeça” (sic). É interessante notar que esse significante trazido por ela, “quebra-cabeça”, está relacionado à história da mãe, à qual ela se identifica. Sua avó quebrou sua mãe em “vários pedaços”, disse a mãe.

Diante desse pedido para “jogar quebra-cabeça”, pensamos na possibilidade de não trazer um jogo pronto, mas, ao contrário, procurar viabilizar a construção, em sessão, de pequenos pedaços na tentativa de alguma gestaltização. Isso porque a intenção não seria simplesmente a de jogar um jogo de quebra-cabeça, mas a de oferecer uma abertura para que encontre referência concreta, justamente porque não há uma referência simbólica. Seria uma tentativa de oferecer algo que pudesse vir em suplência do Nome-do-Pai; ou seja, oferecer a Marcela a possibilidade de construir “algo novo” com pedaços a serem feitos nas sessões, possibilitando-lhe tecer os fios de sua realidade através de sua arte, neste caso, na construção do jogo de quebra-cabeças.

Freud destaca, em 1911, no texto sobre Schreber, que a construção delirante viabiliza para o psicótico uma reconstrução do mundo, permitindo ao sujeito viver nele mais uma vez (cf Freud, 1911). Portanto, segundo a análise de Freud, o delírio é a tentativa de cura para o sujeito psicótico que a partir da construção delirante estabiliza e apazigua de alguma forma sua condição.

Podemos pensar que a arte, também pode funcionar como suplência e assim como o delírio seria uma tentativa de cura para o psicótico possibilitando um apaziguamento do gozo que invade o sujeito (Quinet, 2006). Barrando, portanto, o Outro absoluto, não barrado, aquele Outro que goza, e submete o sujeito a um gozo sem barreiras, infinito.

Segundo Quinet, “o que constitui o sofrimento do sujeito, na psicose, é justamente a dispersão, o despedaçamento de gozo, sendo eminentemente apaziguadora a tentativa de condensar o gozo num objeto fora do sujeito” (Quinet:2006, p71).

Diante disso, pensamos que a possibilidade de criação, no caso de um jogo de “quebra-cabeças”, para esse caso em questão, consistiria numa tentativa de oferecer a esse sujeito, de alguma forma, a possibilidade de articular sua experiência, e reconstruir seu mundo. Reconstruir seu mundo de modo a poder viver nele mais uma vez no sentido mesmo de encontrar no mundo um lugar de sujeito, se produzindo como sujeito, seja através da arte ou do delírio.

É importante ressaltar uma ocasião, em que a mãe de Marcela veio angustiada falar comigo que a filha teve um “ataque de fúria” (sic) no final de semana porque estava desesperada em função de usar uma saia que estava furada. Diz ter ficado muito assustada e não compreender porque tanto desespero e sofrimento da filha ao ver que havia um furo na saia. Diz que ela gritava sem parar, se jogava no chão e “pensou que a filha fosse enlouquecer” (sic).

Na outra sessão em que estava com Marcela a sós, construindo as peças para o quebra-cabeça, ela começou a colar incessantemente uma peça em cima de outra, ao mesmo tempo em que apresentava uma angústia crescente. Quando lhe perguntei porque estava fazendo aquilo, ela se calou. Ficou por alguns minutos sentada e então levantou para abrir a porta perguntando sobre sua mãe, na tentativa de buscar junto a esta algum apaziguamento. A angústia diante da necessidade de cobrir cada vez mais, com peças superpostas, algo que pode estar furado como a saia da qual a mãe falara, testemunha de uma angústia diante do furo que se torna totalmente insuportável para Marcela.

Diante disso, levantamos a hipótese de que provavelmente o que Marcela estava tentando fazer ao colar uma peça em cima da outra, na construção do quebra-cabeça, era tapar o buraco da saia, da falta do significante fálico, justamente porque na psicose é insuportável quando se tropeça no buraco da significação ausente.

Segundo Quinet, “Lacan compara esta situação pouco estável do sujeito antes da descompensação psicótica a um banquinho de três pés, ao qual falta o quarto pé que lhe daria estabilidade” (Quinet:1997, p.19). “A foraclusão do Nome-do-Pai  implica a não travessia do Édipo, uma vez que o sujeito não é submetido à castração simbólica, não havendo, portanto, possibilidade da significação fálica advir” (Quinet:1997, p.15). Na impossibilidade de lançar mão da significação fálica, o sujeito psicótico fica impossibilitado de dar significação aos seus significantes, justamente porque o falo é o significante de toda e qualquer diferença.

A mãe de Marcela depois de relatar o episódio do “ataque” da filha, se mostrou bastante resistente ao tratamento, dizendo que não percebia melhora no comportamento dela. Marcela começou a faltar às sessões porque a mãe disse ter adoecido. Faltou durante aproximadamente um mês e meio. Depois de algumas tentativas de contato por telefone com a mãe de Marcela, sem sucesso, ela retorna as ligações efetuadas dizendo que prefere interromper o tratamento da filha. Segundo ela, Marcela se encontra muito cansada e optou por priorizar as atividades que a filha realiza em um centro de reabilitação psicossocial que freqüenta há dois anos.

Podemos nos perguntar, se a construção do “quebra-cabeça” pode de alguma forma apaziguar a condição de Marcela? Será que diante da falta do significante fálico e da angústia que ela transparecia, Marcela pode conter esse infinito de gozo à qual é submetida?

Infelizmente, Marcela não deu continuidade ao tratamento. Apostamos, no entanto, que ainda consiga construir, seja através da arte ou do delírio, um lugar que possa circunscrever um pouco as invasões deste Outro e, com isso, amenizar seu sofrimento.

 

Referências bibliográficas:

ALBERTI, S. (2004)  O adolescente e o Outro. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2004

FREUD, S. (1911) Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia. ESB. Obras Completas. Rio de Janeiro:Imago, 1996. Vol XII.

NAZAR, T. (2008) Psicanálise e pesquisa: a função paterna. In Conexões em Psicanálise. Rio de Janeiro: Cia de Freud: Escola Lacaniana de Psicanálise, 2008, v.1.

QUINET, Antonio (2006) Teoria e clínica da psicose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

 

 

Notas

* Setor: NESA – Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente do Hospital Universitário Pedro Ernesto. Supevisora:Sonia Alberti. Trabalho desenvolvido no XII Fórum de Residência em Psicologia Clínico-Institucional, em Setembro de 2008.

** Psicóloga, Residente do 1° ano do programa de Residência em Psicologia Clínico-Institucional do IP/HUPE/UERJ.

1 É assim que o Nome-do-Pai, enquanto significante da lei que rege o desejo, pode vir em substituição ao Desejo-da-Mãe (Nazar, 2008).