ARTIGOS

 

 

Uma Escuta da Urgência: Pensando o Trabalho do Psicólogo no Plantão Geral do HUPE*

Ana Beatriz Raimundo de Castro**

 

 


O plantão geral médico do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) funciona diariamente, atendendo das oito às dezessete horas todos os pacientes internados fora de clínica, ou seja, pacientes que estão internados fora da especialidade em que estão realizando tratamento. E a partir das dezessete horas continua responsável pelos pacientes fora de clínica, como também pelos pacientes graves, por grande parte das internações realizadas e pelas avaliações de alguns pacientes do ambulatório que passaram mal e procuram o hospital. 

A residência de psicologia está inserida na rotina do plantão geral há pouco mais de um ano. Antes, a articulação da Residência em Psicologia com o Plantão no HUPE se dava de outras maneiras. Durante cada dia da semana há uma dupla fixa de residentes responsável por acompanhar as ocorrências do plantão geral e pelas solicitações de atendimento para psicologia. Normalmente, essa dupla é formada por um R1 e um R2.

Foucault, em O nascimento do hospital (1979), afirma que antes do século XVIII o hospital e a medicina percorriam caminhos distintos, o hospital não era médico e nem a medicina uma prática hospitalar. O autor data do final do século XVIII a emergência do hospital na tecnologia médica, e afirma que a partir deste momento o hospital foi programado como um instrumento terapêutico, de intervenção sobre a doença e o doente, suscetível de produzir cura.  Surge, portanto, um novo olhar sobre o hospital, este passa a ser entendido como uma máquina de curar que, se produz efeitos “patológicos” deve ser “corrigido”. “O hospital deixa de ser uma simples figura arquitetônica. Ele agora faz parte de um fato médico-hospitalar que se deve estudar como são estudados os climas, as doenças, etc”. (FOUCAULT, 1979, p.100).

Antes do século XVIII, o hospital configurava-se como uma instituição de assistência aos pobres, no qual a função médica não aparecia. Nas palavras de Foucault, uma “instituição de assistência, como também de separação e exclusão”. (1979, p.101).

O personagem ideal do hospital, até o século XVIII, não é o doente que é preciso curar, mas o pobre que está morrendo. É alguém que deve ser assistido material e espiritualmente, alguém a quem se deve dar os últimos cuidados e o último sacramento.  Esta é a função essencial do hospital. Dizia-se corretamente, nesta época, que o hospital era um morredouro, um lugar onde morrer. E o pessoal hospitalar não era fundamentalmente destinado a realizar a cura do doente, mas a conseguir sua própria salvação”. (FOUCAULT, 1979, p. 101/102).

A prática médica nada tinha de hospitalar, seus “cuidados eram exercidos em um espaço não hospitalar, nas casas” (PITTA, 1991,p. 41). Segundo Foucault, (1979) a experiência hospitalar estava excluída da formação do médico, apenas em meados do século XVIII aparece o médico de hospital, que será mais sábio quanto mais experiência hospitalar tiver.  “A partir do momento em que o hospital é concebido como um instrumento de cura e a distribuição do espaço torna-se um instrumento terapêutico, o médico passa a ser o principal responsável pela organização hospitalar” (FOUCAULT, 1979, p.109).

A partir do nascimento da medicina hospitalar ou do hospital médico, “o hospital tem percorrido um caminho complexo e tortuoso em busca do tecnicismo científico adequado às suas novas funções” (PITTA, 1991, p.39). Este passa a ser local privilegiado do saber médico, e de um certo olhar sobre o adoecimento, sobre as doenças, enfatizando uma atuação biologicista, voltada para a cura, enquanto remissão de sintomas.

O plantão geral é um espaço privilegiado do discurso médico, que visa atender o mais rápido possível às “urgências orgânicas”, deixando de lado, sempre que possível o que é singular e subjetivo. Neste contexto, o que faz um psicólogo no plantão geral?

Moura (1996) nos auxilia nesta discussão ao fazer uma distinção entre dois modos de responder frente à urgência: “o pronto-socorro e a prontidão”. Esta situa o “pronto-socorro” do lado da medicina, que irá responder prontamente ao chamado, eliminando, porém, a dimensão do tempo subjetivo.  E situa a prontidão do lado da psicanálise, que ao escutar o chamado da urgência subjetiva “vai articular a pressa exigida da situação ao tempo do sujeito”. (p.10).  Deste modo, a atuação da equipe médica do plantão geral daria como resposta à urgência o pronto-socorro e a equipe de psicologia à prontidão.

Percebemos em nosso plantão, que a maior parte da demanda da equipe médica às plantonistas de psicologia ocorria nas seguintes situações: morte de pacientes, pacientes que estes julgavam muito angustiados ou ansiosos, pacientes no qual não encontravam nenhuma causa “orgânica” para os sintomas apresentados, pacientes psiquiátricos, em caso de piora dos pacientes e para acompanhamento de alguns familiares. Vale ressaltar, que estes encaminhamentos ocorriam, na maioria das vezes, frente à emergência de alguma questão, de algum equívoco suscitado pela situação a qual estes não conseguiam dar conta, esbarrando no limite do seu saber. Diante destas demandas, o que fazer?

Moura (1996) aponta que cabe ao psicanalista “abrir mão de seu narcisismo e se oferecer” diante da demanda inespecífica na instituição, pois “não se trata de dizer não às demandas, mas de respondê-las com o desejo do analista e, portanto, não existindo uma reciprocidade entre o que se pede e o que se oferece“.(MOURA, 1996, p. 7).  Assim, há que se acolher e escutar a demanda da equipe, e a posteriore fazer um desvio na direção do trabalho.

O hospital geral é um espaço com uma série de respostas prontas e rápidas ao sofrimento humano a partir de sentidos muito codificados, que deixam de lado a dimensão subjetiva e a singularidade. A entrada do psicólogo neste espaço pode reintroduzir a questão sobre o sujeito e sobre a urgência subjetiva.

Segundo Moura (1996) o hospital é um espaço onde as pessoas estão diante de acontecimentos inesperados em suas vidas, que por serem inesperados podem “destituir o sujeito do seu ancoramento significante” (p.8 ).

“Pelo fato da destituição aguda que pode ocorrer nessas situações, os acontecimentos se tornam traumáticos e diante da falta de bordejamento significante o sujeito se vê imerso na angústia. As situações de perda, sejam de pessoas queridas (morte), da condição de ‘sadio’ (doença), da condição de ‘inteiro’ (cirurgia)..., se caracterizam na urgência  por rupturas e descontinuidades que levam a pessoa a perguntar: Quem sou eu agora?, e ao mesmo tempo a se deparar com a quebra de certezas e ilusões que a sustentavam: Por que comigo?... Estas situações com as quais se depara o psicanalista em um hospital o confrontam com uma práxis atípica , a da urgência, quando o sujeito vai estar assujeitado às situações inesperadas... ” (MOURA, 1996, p.8/ 9).

Assim, há uma urgência subjetiva frente ao inesperado dos acontecimentos no hospital, pois como nos aponta Moura (1996), o sujeito fica imerso em uma situação de desamparo.  Trata-se, na urgência, para esta autora, de perguntar sobre um saber que já se apresenta como resposta antecipada. Tendo o sujeito que dar conta da resposta sobre a morte, sobre a castração, antes de ter se perguntado sobre ela. 

Deste modo, o trabalho do psicólogo no hospital e no plantão geral deve ter como direção a escuta da urgência subjetiva, a escuta do que é urgente para cada sujeito neste momento.  Podendo a entrada de uma escuta, nestas situações limites, funcionar para o sujeito como um convite de trabalho frente à urgência.

Dando continuidade a esta discussão, passaremos ao relato de três breves situações clínicas atendidas pela equipe de psicologia no Platão geral a partir da solicitação da equipe médica.

Foi solicitado ao plantão de psicologia que atendesse a paciente Tereza1. O residente de medicina que estava a acompanhando, pelo plantão geral, ficou muito mobilizado, pois quando disse para Tereza que esta iria realizar uma cirurgia para amputar a perna, percebeu que ela ainda não sabia. Frente à surpresa da paciente, o residente desmentiu que haveria a cirurgia. E ao ser indagado pela paciente novamente disse que haveria sim a cirurgia.

Diante deste acontecimento, o médico-residente percebeu que a paciente havia ficado muito ansiosa, e por não saber o que fazer, ele solicitou auxílio do serviço de psicologia do plantão geral.

A paciente Tereza estava muito mobilizada com a situação de sua internação hospitalar, disse que já estava internada há quatro meses e nada era resolvido. Ela Apresentava graves problemas vasculares e estava internada numa tentativa da equipe médica de reverter seu quadro clínico, para que não fosse necessária a amputação. Tereza foi muito receptiva a minha chegada e solicitou continuar sendo acompanhada pela psicologia.

Após uma avaliação, a equipe médica achou que não seria mais possível esperar, pois o quadro da paciente estava se agravando, e decidiu realizar a cirurgia para amputação da perna.

Tereza logo após a cirurgia, pouco falava sobre o assunto, e quando falava demonstrava estranhamento: “não faz nenhum sentido, eu ainda sinto a minha perna. É como se tivesse um furo nesta cama e a minha perna estivesse dentro dele”.

Ao longo dos atendimentos pudemos perceber que Tereza pôde, após algum tempo de escuta, começar a construir algum sentido para esta perda, a se perguntar como seria daqui para frente e a fazer planos para quando saísse do hospital.

Tereza afirmava a importância de poder estar sendo ouvida, e dizia que pôde, a partir da fala, fazer uma avaliação de sua vida, de sua história, do que faria novamente e do que gostaria de fazer diferente. A paciente diz que devido a sua criação nunca conseguiu ser muito carinhosa com a filha, e que gostaria de poder fazer diferente, gostaria de dizer para a filha o quanto ela a amava.

Mas o quadro clínico de Tereza se complicou e então, a paciente piorou muito. Quando chego para atendê-la, pergunta se sua filha pode ficar no atendimento, pois gostaria de dizer uma coisa para ela.  E sem esperar a minha resposta, continua falando, dirigindo-se à filha, o quanto ela a amava e o quanto era importante para ela que a filha soubesse disso. Infelizmente, alguns dias depois a paciente faleceu.

A paciente Gabriela2 estava internada na clínica médica por conta do segundo acidente vascular cerebral (AVC/ derrame). Um residente de medicina, ao atender a paciente, apostou que poderia ser importante para ela ser atendida pela psicologia e faz o encaminhamento.

Quando chego à enfermaria na qual a paciente está internada, percebo a surpresa da equipe com o pedido de atendimento para Gabriela.  A equipe diz que a paciente está com dificuldades de falar por conta das seqüelas do AVC, mas que com algum esforço compreende-se o que ela diz.

Gabriela foi muito receptiva ao atendimento dizendo que estava precisando falar. Fazia um esforço para conseguir articular as palavras e as frases, nos primeiros atendimentos com a paciente tive muita dificuldade de entender o que ela estava falando. Ao fim dos atendimentos Gabriela sempre solicitava que eu retornasse, pois precisava falar e indagava: fazer o quê?

Após alguns atendimentos a paciente começa a repetir a seguinte frase “está muito difícil”. Quando indago o que está muito difícil, Gabriela formula com muita dificuldade que quando era mais nova havia sido garota de programa e que precisava falar disso com alguém, pois não aquentava mais guardar isto só para ela. Gabriela relata que poder falar disso comigo a deixou mais calma, e diz: “eu acho que dá para fazer alguma coisa”.

Foi solicitado por uma residente de medicina atendimento para o paciente Carlos3, 45 anos, por estar tendo “dificuldades em aceitar o diagnóstico” de HIV positivo. Quando fui atendê-lo, o paciente relatou que havia solicitado várias vezes ser atendido pela psicologia, e disse: “estou precisando muito falar, obrigado por você ter vindo”.

Carlos relata que neste momento está se sentindo muito sensibilizado e mobilizado com o fato de estar doente e com o modo como ficou, muito emagrecido, com algumas dores e feridas pelo corpo.

As irmãs do paciente se revezam para que este tenha acompanhante durante todo o tempo. Carlos chora muito durante o atendimento e diz não conseguir chorar na frente da família. Este diz que sempre ocupou na família o lugar da “responsabilidade e da alegria” e que agora estava “perdido”, dizendo “eu estava guardando isto há muito tempo”.  

O paciente fala da dificuldade de “suportar” todo o investimento da família nele, sem culpá-lo por estar doente e sem perguntar nada.  Este afirma que sempre se preocupou muito com os outros, amigos e famílias, ficando na posição de cobrar destes que “façam isso ou aquilo” e de ajudar os outros a “resolverem os problemas”.

Com o decorrer dos atendimentos, Carlos faz uma leitura de sua história, pensando o modo como se relacionava com a família e amigos, e diz: “Eu sempre me preocupei demais com os outros, e olha aonde eu vim parar, numa cama de hospital. Acho que deixei a doença chegar a esse ponto, por ficar cuidando dos outros e não me cuidar, por não me preocupar muito comigo. Eu estou repensando esse meu modo de ser. Acho que vou ter que trabalhar minha cabeça para aprender a ser de outro jeito, assim não dá mais”. 

Trouxe estas três situações clínicas para marcar a importância de nosso trabalho no hospital e no plantão geral, e para expressar o desejo de todos nós de que isso continue, que continuemos a acolher e escutar a demanda da equipe, tendo como direção privilegiar a questão da urgência subjetiva, ou seja, o que emerge como questão e é urgente para cada sujeito frente a uma situação limite.

 

Referências Bibliográficas

FOUCAULT,M. A Política da Saúde no Século XVIII, In: Microfísica do Poder, Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

___________. Nietzsche, a Genealogia e a História, In: Microfísica do Poder, Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

___________. O Nascimento da Medicina Social, In: Microfísica do Poder, Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

___________. O Nascimento do Hospital, In: Microfísica do Poder, Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

MOURA. M. D. Psicanálise e Hospital, Rio de Janeiro: Editora Revinter, 1996.

PITTA,A. Hospital Dor e Morte como Ofício, São Paulo: Editora Hucitec, 2º Edição,1991.

 

 

Notas

* Trabalho realizado no Espaço de Atividades e Convivência Nise da Silveira da UDA de Psiquiatria do HUPE/UERJ, com supervisão  do Prof. Ademir Pacelli Ferreira.

** Residente do segundo ano de Psicologia Clínico – Institucional – IP/HUPE/UERJ.

1 Nome fictício.

2 Nome fictício.

3 Nome fictício.