ARTIGOS

 

 

A dimensão narcísica na relação entre mãe e filha: quando “viver junto é impossível e separar-nos é mortal”*

Elisa Lima Mayerhoffer Peralva; Michele Siviero Martins;**

 

 


O presente trabalho é resultado de nossa prática enquanto residentes de Psicologia no Setor de Terapia Familiar Psicanalítica. Nosso objetivo é apresentar um panorama acerca dos estudos e do atendimento terapêutico realizados neste Setor, articulando o referencial teórico estudado com o trabalho clínico, ressaltando esta articulação bem sucedida como responsável tanto pelos avanços terapêuticos do tratamento quanto pelo nosso enriquecimento e crescimento profissionais. Iniciamos o trabalho trazendo um pequeno relato de dois casos clínicos atendidos por nós para, em seguida, dissertar sobre alguns pontos teóricos fundamentais para se pensar o funcionamento psíquico, um tanto peculiar, das famílias que atendemos no Setor.

Baseadas nos conceitos de Haydée Faimberg (2001), pretendemos trazer à cena a discussão sobre a dimensão narcísica nas relações familiares, mais especificamente, na relação mãe-filha, considerando o narcisismo como um conflito intrapsíquico, ou seja, um modo de funcionamento do sujeito que remete ao amor do ego por si mesmo, mas que precisa ser confirmado por um investimento do outro. Em algumas dinâmicas transgeracionais, essa relação pode cristalizar os membros da família, tornando-os reféns de uma situação da qual não se vê possibilidades de saída. É isso que vemos nas relações estabelecidas entre Maria e Ana com suas filhas.

 

I- Maria e Joana: uma perpetuação do “compromisso” entre mãe-filha.

Maria, 59 anos, vem sendo atendida há cerca de seis meses no Setor de Terapia Familiar Psicanalítica. Trouxe como queixa principal a dificuldade de relacionamento com a filha Joana, de 22 anos, que segundo ela é uma “louca”. Relata que a filha não tem responsabilidade, que vive para gastar dinheiro compulsivamente com os namorados e comprar coisas desnecessárias. Pedia ajuda para lidar com Joana, pois não sabia mais o que fazer diante de tantas discussões violentas que, por vezes, acabavam com a filha lhe agredindo fisicamente ou ameaçando matá-la com facas e outros objetos.

Quando tem essas “crises”, Joana quebra tudo em casa e agride todos a sua volta, principalmente a mãe. Às vezes, só é contida pelos bombeiros. Atualmente, Joana faz tratamento psiquiátrico e tem uma vida que podemos chamar de “normal” para uma jovem de sua idade, não fosse o relacionamento conturbado que mantém com a mãe Maria.

Durante os seis meses de atendimento Joana nunca quis comparecer à terapia, apesar das inúmeras tentativas da mãe de levá-la, o que não impediu Maria de continuar vindo sozinha aos encontros semanais. Mesmo não participando do atendimento, Joana se fazia presente de forma quase exclusiva no discurso, nos pensamentos e nos desejos da mãe. O relacionamento com Joana é um ponto privilegiado das sessões, assim como de sua própria vida e de seu psiquismo, voltados especialmente para a filha. Dormem juntas na mesma cama e Maria cuida pessoalmente da roupa e da comida da filha, ficando muito magoada quando esta rejeita sua comida ou quando prefere comer fora com as amigas ou o namorado.

Maria queixa-se constantemente das escolhas amorosas da filha, diz que Joana só arruma namorados que “não prestam” e que os homens só ficam com ela porque assume todos os gastos financeiros por eles. Sente-se extremamente incomodada quando a filha sai com o namorado e passa toda a noite fora. Sua maior preocupação é que lhe aconteça alguma coisa; teme morrer e deixar Joana desamparada, “sem responsabilidade, sem nada”. Nas sessões, descreve com detalhes seu cotidiano com a filha, mas traz principalmente suas inquietações e sua intensa angústia por não poder controlar todos os passos e desejos dela. Fala sem parar sobre a rotina da filha, sua relação no trabalho, com as colegas e com a faculdade. Sofre porque queria que a filha fosse como ela.  É como se a vida de Joana fosse sua própria vida. É como se desejasse viver a vida por (de) Joana.

Joana, por sua vez, também solicita a mãe: exige que durmam juntas, por sentir um medo terrível de dormir sozinha, não admite fazer seu próprio prato nem lavar suas roupas íntimas, delegando estas tarefas como obrigações da mãe. À noite, não vai ao banheiro sem Maria, da mesma forma que exige sua companhia todos os dias no caminho para o trabalho. Não suporta não ter os seus desejos atendidos por Maria e mostra-se muito ressentida com a relação da mãe com uma sobrinha muito próxima. Participa à mãe tudo o que faz e também os detalhes de seu relacionamento com o namorado. Por outro lado, repele com agressividade qualquer esboço de interferência da mãe em sua vida, afastando-a como se temesse ser “engolida” por ela.

Percebemos que a relação compartilhada por Maria e Joana pode ser caracterizada como supostamente completa, indissociável e definitiva. Exatamente quando este conluio é ameaçado, Maria se desorganiza, pois sua vida tem como eixo central e único a filha Joana. A intensidade de amor e ódio vividos na relação entre mãe e filha é algo que chama particular atenção. Trata-se de uma situação paradoxal, pois estar junto à mãe é vivido por Joana como uma intrusão, ao mesmo tempo em que se separar dela remete ao vazio, à não existência psíquica.

Joana é filha única de Maria com o único homem com quem se relacionou durante sua vida e com o qual foi casada por muitos anos, até separar-se dele há alguns anos. Casou-se aos 35 anos, após um período bem curto de namoro e logo depois engravidou. Relata que a vida conjugal nunca foi boa, sendo o marido uma pessoa extremamente violenta que a ameaçava de morte e também a seus familiares.  Após o casamento, parou de trabalhar fora e passou a viver exclusivamente para cuidar de sua filha e de sua mãe, que já era idosa e morava em sua casa.

Maria conta que sempre viveu junto a seus pais, achava que sua vida seria cuidar deles e, por isso, nunca havia pensado em namorados. Veio a se casar quando seu pai já era falecido e sem o apoio da mãe, que sentia ciúmes de seu relacionamento com o então futuro marido. Apesar de ter-se casado, Maria não abriu mão de continuar morando e cuidando de sua mãe. Porém, devido aos problemas com a filha e à péssima relação com o marido, teve que colocar a mãe em um asilo onde veio a falecer. Sente-se muito culpada por ter se separado dela, pois segundo suas próprias palavras: “a obrigação dos filhos é estar junto aos pais até a morte”.

Ao falar de sua relação com os pais e, principalmente, de sua relação com a mãe, observamos que na família de Maria parece existir uma espécie de compromisso em que as mães devem ficar com as filhas e estas, por sua vez, nunca deixarem suas mães. Maria deseja que a filha seja para ela o que ela mesma foi para sua mãe; é como se este modo de relacionamento, em que mãe e filha formam um uníssono, não pudesse ser desfeito e tivesse que ser perpetuado. Aqui, a separação é sinônimo de intenso sofrimento e só pode ser vivenciada através da morte, seja ela física ou psíquica. Desta forma, Maria e Joana vão mantendo este doloroso pacto: indiferenciadas, entranhadas uma na outra.  Assim se faz o grande drama de mãe e filha: não sabem como viverem juntas e nem como ficarem separadas.

 

II- Ana, Samantha e Cláudia: a sobrevivência (psíquica) depende da união.

Ana, 58 anos, é mãe de Samantha, de 23, e Cláudia, de 27. O encaminhamento se deu após internação de Cláudia no Serviço. Ao ser contatada, a família recusou num primeiro momento o atendimento. Porém, passados alguns meses, entraram em contato com o Serviço, solicitando terapia, pois tinham problemas quanto à “auto-estima, procrastinação, dentre outros”. Nesta época, Samantha estava grávida de quatro meses de Leo, com quem vivia em casa própria. Cláudia também tinha um companheiro, Ricardo, e uma filha de poucos meses, porém moravam todos com Ana. Para esta, a terapia se fazia necessária porque ela e suas filhas eram sempre subjugadas aos homens, não possuíam auto-estima o suficiente para se desvencilharem deles, e sempre procrastinavam quanto a mudanças importantes que deveriam realizar em suas vidas.

A relação de Ana com o pai de suas filhas foi conturbada. Conheceu-o e um ano depois, foi morar com ele. Após problemas no casamento por conta de sua sociedade com um agrônomo numa fazenda que pretendia arrendar, Ana acabou por separar-se, indo viver com sua mãe e a filha Cláudia, com dois anos na ocasião. Após um período, seu ex-marido tornou a procurá-la e ela o aceitou de volta. Engravidou de Samantha, e posteriormente, de Carla, que morreu poucos dias após o parto. A mãe de Ana, com quem mantinha forte relação, faleceu pouco tempo depois. Cansada das agressões verbais e físicas do marido, se separou. Diante de tantas perdas, Ana não conseguiu elaborar os lutos e deprimiu ficando suas filhas, de dois e seis anos, “responsáveis” pela casa e por ela própria. Relatam que Cláudia ficava ao lado da cama da mãe, conversando com ela por horas, fazendo perguntas para que não dormisse. No supermercado, costumava puxar a mãe pela mão, enquanto determinava o que seria comprado. Em uníssono, concordam que este foi um período muito difícil, e que só sobreviveram porque estavam “unidas”, união então ameaçada pelos homens que se interpunham entre ela e suas filhas.

Estas, por sua vez, se referem à mãe com um enorme respeito e admiração, e se mobilizam com sua fala destrutiva direcionada aos genros. A tentativa de diferenciar-se é fonte de angústia e culpa. O relacionamento das filhas com seus companheiros é tema central no início do processo psicoterápico. Ana não aceita a presença dos genros e que Samantha tenha saído de casa para viver com o companheiro. Dizia fazer tudo para agradá-los, relatando que chegou a levar café-na-cama para o marido de Cláudia, contando com surpresa que ele ficou muito incomodado com a situação. Parecia não haver nenhuma diferenciação quanto ao que era das filhas e o que era seu.

Ao longo da terapia, Ana falava mais de si. Em um dado momento, relatou muito emocionada que sua vida foi marcada pelo sofrimento. Disse: “por esses dias me vi no reflexo do vidro da janela do ônibus. Não me reconheci – vi uma mulher de cabelos brancos, envelhecida, largada” (sic). Em contato com sua história, Ana sofre, se angustia. Questiona-se sobre o que construiu ao longo dos anos. E nesse momento, remete-se às filhas.

Ao longo do processo psicoterápico, Ana começou a ir só à terapia. Samantha solicitara um atendimento para ela e o marido, e mesmo tendo se separado, não retornou à terapia de família, mantendo seu espaço individual. Cláudia já estava em tratamento em outra instituição e se manteve nesse espaço. Pudemos perceber que a demanda inicial, que parecia ser de manutenção da relação de indiferenciação, tornou-se solicitação para um processo de individuação, por mais doloroso que seja, ainda.

 

III- A dificuldade da separação e a recusa da alteridade

Para pensar os casos descritos acima propomos, primeiramente, um conceito que foi amplamente desenvolvido por Haydée Faimberg (2001): a regulação narcísica do objeto. Em alguns de seus artigos, a autora se dedica a descrever o conceito juntamente com duas características ligadas a ele: a função de apropriação e a função de intrusão.

Faimberg aborda o narcisismo como uma forma particular de investimento que se refere a “um modo de funcionamento do sujeito em suas relações com o mundo e não a um conteúdo psíquico” (2001:144). De seu ponto de vista, o narcisismo deve ser estudado como um conflito intrapsíquico, uma vez que apresenta um caráter contraditório. Isto quer dizer que, apesar de ser definido como “o amor que o ego dedica a si mesmo”, o narcisismo remete sempre ao investimento do outro. A auto-suficiência que o termo expressa precisa de um outro para confirmá-la. Baseando-se na afirmação de Freud de que o amor dos pais pelos filhos reaviva seu próprio narcisismo infantil, estuda o conceito a partir da perspectiva da intersubjetividade, da relação do sujeito com o outro.

Entretanto, na relação de objeto narcisista o sujeito tende a anular esse outro do qual, paradoxalmente, necessita, não reconhecendo seu status de ser separado e único. A autora define a relação narcisista como “uma negativa do sujeito a admitir a alteridade, a intersubjetividade” (ibidem:145). Nesta relação, o sujeito não considera o outro a partir do que ele é e daquilo que deseja, mas sim em função do prazer ou desprazer que lhe proporciona. Diferentemente deste funcionamento narcísico, o nível edípico supõe a diferença entre os seres, sexos e gerações, ou seja, o reconhecimento da alteridade. Destes dois níveis, surge o que a autora coloca como um conflito intrapsíquico potencial, resultado da luta travada entre os conflitos narcísico e edípico.

Ao dissertar sobre o funcionamento narcisista dos pacientes na transferência, Faimberg (2001) aponta que ele está relacionado à história re(construída) dos pais, ou seja, os pais transmitem aos filhos um modo de funcionamento narcisista aos quais eles lançaram mão para resolver seus próprios conflitos intrapsíquicos, inclusive o edípico. Refere-se aos pais internos, àqueles que estão inscritos no psiquismo do paciente e que ganham forma no seu dizer. Sendo assim, a relação de objeto narcisista caracteriza-se pelas funções de apropriação e de intrusão. O amor pelo objeto é um amor narcísico, faz com que o sujeito se aproprie das qualidades do outro como se fossem dele, tudo aquilo que é digno de amor faz parte do sujeito. Logo: “amo, sou”. Há uma apropriação da identidade positiva do filho. Porém, tudo aquilo que diz respeito à criança, aos seus desejos singulares e à diferença, o sujeito tende a odiar, além de atribuir a ela tudo o que não aceita em si mesmo, tudo o que lhe provoca desprazer. O filho passa a ser então uma espécie de identidade negativa dos pais. Logo: “odeio, você é”. É apenas o ódio que define a alteridade.

A regulação narcisista dos pais internos não permite a criação de um espaço psíquico para que a criança desenvolva sua identidade, livre da submissão e do poder alienante do narcisismo dos pais. O que se estabelece é um “dilema narcisista” baseado na lógica do “ou/ou”; o sujeito se sente possuidor do objeto de forma totalitária, absoluta, ou, por outro lado, vive totalmente excluído por ele. Não há aquilo que podemos chamar de diferenciação ou limites, mas sim uma dinâmica do “engatado”, um psiquismo vazio e, ao mesmo tempo, cheio demais.

Nos casos apresentados anteriormente, pudemos observar este modo de relação narcisista de forma bem clara. Tanto Maria quanto Ana colocam as filhas como eixo central de suas vidas e afastar-se delas significa perder o eixo da própria vida. Quando as filhas as solicitam, sentem-se como parte delas e as filhas, como partes de si mesmas. Esperam que nada quebre isso, que nada se interponha entre elas, sendo uma tudo para outra. O grande drama é perceber que as filhas não são iguais a elas, que não fazem parte delas.

Joana, Samantha e Cláudia, por sua vez, em plena juventude, anseiam por se separar da mãe, investir em outras relações, mas não conseguem. Vivem presas na lógica narcísica que parece ter sido transmitida já de outras gerações de suas famílias. Quando tentam se diferenciar o fazem com muito ódio e culpa, algo que percebemos através de suas “crises” ou surtos de agressividade voltados para a mãe. Mas, existiria vida sem a mãe? Para as filhas, ver-se como alguém diferenciado da mãe parece ser algo bastante difícil, que remete a um registro paradoxal, no qual: “para eu ser valorizada eu tenho que ser você, mas ser você é não ser eu”. Sendo elas mesmas é como se não fossem nada. O que é valorizado é ser como a mãe.

Mães e filhas parecem não saber o limite que separam uma da outra. As mães se apropriam de tudo aquilo de bom que vem das filhas, passam a viver a vida delas, sua rotina no trabalho, nos estudos, nos planejamentos futuros e até mesmo nos relacionamentos com os companheiros delas. As tentativas das filhas de trilhar um caminho próprio são fortemente reprimidas pelas mães.

Em consonância com as idéias de Faimberg (2001), Racamier (1988) nos apresenta o conceito de “perversão narcísica”. Relembra as duas tarefas essenciais que cabem ao ser humano realizar, ao longo de toda a sua existência:

- uma, seria “fazer face à angústia consciente e, sobretudo, inconsciente que, própria à natureza humana, sobrevém desde os primórdios da vida [...]”(p. 59);

- a outra seria constituída pelo “luto fundamental, não só ao que se refere aos lutos propriamente ditos, [...], mas igualmente a esse trabalho de desilusão, de separação e de individualização que cabe ao ser humano, à criança desde o início, e que não cessa jamais [...]” (p. 60). Afirma que o luto fundamental possibilita ao sujeito a “abertura para o outro enquanto tal, assim como para sua própria realidade interna” (p. 60).

Assim, o perverso narcísico teria uma espécie de “perversão moral operando nas relações do sujeito com o seu meio: um modo particular de se proteger dos conflitos internos, à custa do meio” (Racamier, 1988:63).

Na definição de Racamier, este estaria envolvido no trabalho de:

“... evitar o impacto dos sentimentos de luto, angústia, desilusão e separação, tratando de colocar ativamente sobre alguém as dores, as dificuldades e os conflitos vinculados a eles. Trata-se de evitar, de se desembaraçar dessas tarefas de elaboração da angústia e do luto, próprios a todo ser humano. Proponho que as tarefas psíquicas que um sujeito repele, e que seu ego não está em condições de assumir, vão cair, inevitavelmente, sobre outros ombros. E, muitas vezes, no círculo fechado da família” (p. 63).

Afirma então que este tipo de perversão pode se manifestar em casais narcísicos, e que estes tendem a funcionar de maneira autárcica, ou seja, tendem “a formar uma unidade que se pretende completa, definitiva, indissociável, eterna e todo-poderosa. Nessa unidade, não haveria lugar para tensões, desejos (fontes de tensão) ou conflitos” (p. 64). Como seria impossível viver de forma autárcica todo o tempo, a ameaça do conflito se faz sempre presente, e sendo a “diferença um perigo, em vez de admiti-la, experimenta-se que é o exterior que se constitui como sua encarnação e como representante de sua ameaça” (p. 65). O esforço é para que conflitos não emerjam, todos pensem de igual maneira.

Em família, entendemos que aquilo que não se resolve se repete. Nestas famílias parece ser isto que acontece. A relação dessas mães com os próprios pais segue a mesma lógica narcísica que estabelecem com as filhas, o que podemos chamar de uma relação narcísica entre gerações. Este laço entre as gerações supõe que a separação e a diferenciação constituem um risco de morte. Para Faimberg (2001):

“(...) o reconhecimento da diferença de gerações e de sexos, assim como o reconhecimento do ”outro” como alguém diferente de si mesmo, são aquisições psíquicas fundamentais para a criança. Entretanto, em seu desamparo, necessita que seus pais a reconheçam primeiro como diferenciada da própria história edípica deles. É óbvio que tal diferenciação nunca é total, já que os pais têm sempre desejos inconscientes” (p. 139).

Tais aquisições parecem não ter sido feitas por estas mães, e por isso não foram transmitidas para as filhas. Frente à ferida que o conflito edípico impõe, isto é, frente à separação e à diferenciação, encontraram uma solução narcisista. Diante da possibilidade de separação, emerge uma angústia muito forte de desintegração e fragmentação.

Para melhor compreender essa relação entre as gerações, Faimberg (op. cit.) criou o conceito de configuração edípica, no qual inclui tanto as relações dos filhos com seus pais como também a dos pais com seus filhos. Relações recíprocas, apesar de dissimétricas. A configuração edípica pressupõe dois aspectos: os desejos inconscientes do sujeito (desejos incestuosos e de morte em relação aos progenitores) e a visão de como os pais reconheceram sua alteridade. Se o que se percebe destes pais é um modo narcisista de relação, o que se dá é essa dinâmica do não reconhecimento do outro, de sua anulação como ser desejante.

Nos casos aqui descritos, Maria e Ana identificam-se com a regulação narcísica de seus pais internos, organizadores de seu psiquismo, e transmitem às filhas este modo de relação. Uma história que, em parte, não pertence a sua geração.

 

Considerações finais

Acreditamos ser de grande validade pensar o manejo clínico desta dimensão narcísica no processo terapêutico. Tomamos como ponto de partida a idéia de uma re(construção) na transferência da relação dos pais internos narcísicos com o sujeito. Tendo como mola propulsora do atendimento o manejo da transferência, o que se procura é não somente uma repetição, mas sim uma transformação, como bem coloca Faimberg (2001). O trabalho clínico, então, visa uma construção interpretativa que permita a passagem desta identificação alienante à representação e ao reconhecimento da perda do objeto.

Diferentemente de Maria, que inicia o processo psicoterápico, notamos que Ana tem podido vivenciar, através da transferência, um encontro com seus próprios objetos, que aos poucos a confrontam com a diferenciação e o reconhecimento da alteridade.

 

Referências Bibliográficas

FAIMBERG, H. “A dimensão narcisista da configuração edípica” In: Gerações, Mal-Entendido e Verdades Históricas. Porto Alegre: Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul: Criação Humana, 2001.

____________. “A dimensão narcisista da configuração edípica e fim de análise” In: Gerações, Mal-Entendido e Verdades Históricas. Porto Alegre: Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul: Criação Humana, 2001.

RACAMIER, P.C.(1988). Perversão narcísica na família do psicótico. In: VILHENA, J. (org). Escutando a família: uma abordagem psicanalítica. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1991.

 

 

Notas

* Trabalho desenvolvido na UDA de Psiquiatria do HUPE/UERJ, sob supervisão da Dra. Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado e apresentado no X Fórum de Residência em Psicologia Clínico-Institucional, em maio de 2006.
** Psicólogas, Residentes do 2o ano do Programa de Residência em Psicologia Clínico-Institucional do IP/HUPE/UERJ.