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Cisão e Negação: defesas de um paciente soropositivo*

Helena Pinheiro Jucá-Vasconcelos**

 

 


Venho por meio deste trabalho discutir dois mecanismos de defesa encontrados em um caso atendido no Setor de Psicodiagnóstico Diferencial da Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto: cisão (também chamada de divisão ou splitting) e negação.

 

1. Desenvolvimento teórico

Anna Freud (1978) define defesa como “a luta do ego contra idéias ou afetos dolorosos ou insuportáveis” (p. 36). O mecanismo de defesa “na qual se baseia a fantasia de inversão dos fatos reais nos seus opostos” (p. 80) é a negação. Propõe que com o desenvolvimento da criança, ela deva ser capaz de se utilizar de outros mecanismos menos complexos, como a evitação.

O ego utiliza mecanismos de defesa na tentativa de se proteger da ansiedade excessiva causada pela experimentação de uma circunstância sem possibilidade de elaboração. Entretanto, ao serem retirados os conteúdos mentais, há como conseqüência a alteração da realidade (Barros, 2004).

Barros (op.cit) expõe que os motivos que levam ao afastamento da realidade, por parte do indivíduo, sempre foram enigmáticos. A princípio, a explicação se baseava no excesso de tensão, por conta da ansiedade, produzindo repressões. Portanto, acreditava-se que o que desequilibrava a pulsão era retirado da consciência e tornado inconsciente. O autor cita a proposta dada por Melaine Klein que descreve a possibilidade do self de se dividir e projetar nos objetos internos e externos partes de si para preservar a integridade do ego. Produzindo, então, uma identidade do objeto a partir desta projeção, modificando a percepção da realidade.

Segal (1975) comenta que para uma personalidade estar bem integrada é preciso que passe por todas as fases do desenvolvimento, sendo também importante a realização de certas ações na posição esquizo-paranóide. Cita a cisão que ajuda o ego a “emergir do caos e organizar suas experiências” (p. 47). A princípio o ego divide a experiência, que pode ser excessiva e extrema, em objeto bom e objeto mau, ordenando o “universo das impressões emocionais e sensoriais da criança” (p. 47). A realização deste caminho é fundamental para a integração posterior. Ela é a base para a capacidade de discriminar, de “prestar atenção e de suspender a própria emoção a fim de formar um juízo intelectual” (p. 47) e também para a formação da repressão.

A maneira que se apresentará a repressão posteriormente dependerá como ela se estabeleceu na fase primitiva do desenvolvimento. Se tiver sido excessiva e rígida se apresentará através de uma rigidez neurótica demasiada; caso tenha sido menos avassaladora, será proporcionalmente menos mutiladora e proporcionará uma melhor comunicação entre o inconsciente e o consciente (Segal, op.cit).

Assim sendo, a autora aponta que a cisão é um mecanismo de defesa importante, desde que não seja excessivo. Enfatiza também que estará por toda a vida do sujeito de forma alterada e que através dela mecanismos menos primitivos, como a repressão, podem ser estabelecidos. Destaca que há conecção entre a divisão, a ansiedade persecutória e a idealização. Caso estas últimas estejam armazenadas em sua configuração original na vida adulta, há alteração do pensamento. Entretanto, elementos de ansiedade persecutória e de idealização são necessários nas emoções adultas.

Com isso, Segal (ibidem) esclarece que os mecanismos de defesa utilizados na posição esquizo-paranóide não somente protegem o ego de ansiedades imediatas e esmagadoras, como também são graduais no desenvolvimento. Para que o sujeito ultrapasse esta posição satisfatoriamente, é necessário que se tenha predominantemente, interna ou externamente, experiências boas sobre as más. Assim, “o ego adquire crença na prevalência do objeto ideal sobre os objetos persecutórios, bem como na predominância de seu próprio instinto de vida sobre seu instinto de morte” (p. 48).

Entretanto, quando há predominância de experiências más, a identificação projetiva é utilizada de forma alterada, já que “a parte projetada é estilhaçada e desintegrada em fragmentos diminutos, e esses fragmentos diminutos são projetados no objeto, desintegrando-o, por sua vez, em partes diminutas” (Segal, ibidem: 67).  Isto ocorre já que a realidade é sentida como persecutória e há um ódio violento a toda experiência de realidade – interna ou externa. Com isso o aparelho perceptual é atacado, assim como também os vínculos, entre o eu e os objetos ou entre vários fragmentos do eu, como as funções de sentir e pensar (Bion, 1967). Para sobreviver a tal situação e resguardar seu ego, o bebê expulsa e mantém “um objeto ideal protegido dos efeitos devastadores de sua identificação projetiva” (Segal, ibidem: 70).

Por outro lado, Barros (2004) aponta que o indivíduo sofre também de carência de experiências emocionais para seu desenvolvimento. Expõe a necessidade de não apenas levantar as repressões ou propiciar um ambiente facilitador, mas também restaurar as funções mentais perdidas para que seja possível pensar sobre experiências antes impossíveis de serem pensadas ou sentidas. Isto porque, com a mente cindida, o sujeito torna-se incapaz de simbolizar, uma vez que não há comunicação entre as diversas instâncias psíquicas, não conseguindo, assim, pensar os sentimentos. Com isso, a vida perde o sentido e a capacidade de pensar torna-se bloqueada, não sendo imaginável nem a concepção de certos pensamentos.

 

2. Caso clínico

Dionísio1 chega com um pedido de psicodiagnóstico e buscando respostas quanto a sua vida. O paciente foi encaminhado pelo Serviço de Psicologia Médica do hospital com a solicitação de avaliação psicológica para esclarecimento diagnóstico. O paciente, soropositivo, se queixava de esquecimentos, insônia e desmotivação para tarefas do cotidiano (sic).

Sua infância se passara em uma pequena cidade fluminense, sem amigos, pois não lhe era permitido pelos pais o contato com os vizinhos e a saída de casa. Segundo ele, havia, também, pouco contato com os pais, que não dialogavam com os filhos. O pai era militar, autoritário, rígido e intolerante para com os filhos. Aos sete anos de idade, fugiu de casa. Sua mãe, ao perceber, foi atrás da criança e a trouxe de volta. Lembra-se com desgosto de atitudes autoritárias do pai e relata não ter sentido a morte dele.

Nas sessões pôde-se perceber que Dionísio estabelecera uma configuração onde a mãe representava o objeto ideal, bom, e o pai, o objeto mau. Negava toda e qualquer configuração negativa da mãe. Não parecia conseguir ver na passividade da mãe a negligência e a violência. Por exemplo, comentou que quando a família visitava os avós maternos, ele e seus irmãos não podiam entrar na casa e eram obrigados a ficar do lado de fora. Seu avô era esclerosado e também ficava do lado de fora da residência. A avó alegava, segundo Dionísio, não querer desordem em seu lar. Somente seu irmão mais velho era autorizado a entrar e lanchar com a avó e a mãe. Ainda sobre essa situação, o examinado informou que sua avó perdera seu primogênito, tendo receptividade para seu neto mais velho, visto como substituto do filho que perdera. O propósito relacionou esta situação a vivências de baixa auto-estima.

Entretanto, lembra-se de situações onde seu pai o agredia fisicamente através de castigos desmedidos e injustos. Conta que por ter desobedecido ao pai, foi obrigado a permanecer na garagem de sua casa ajoelhado no milho. Lá o pai fazia trabalhos de marcenaria e, mesmo doente, com febre e quase sem conseguir respirar por conta do pó do ambiente, o pai não o deixou sair de lá até que anoitecesse.

No fim da infância, passou a sentir-se mais livre ao mudar-se para um sítio com a família. Diz ter boas lembranças desse lugar, já que ele podia passear e andar sem estar na vista dos pais. Neste local teve seu primeiro relacionamento amoroso com uma vizinha, contudo, diz que sempre se percebeu com interesse por outros homens. Fez menção que, ao pegar uma carona com um homem quando adolescente, foi “abusado”. Ao se procurar entender melhor o que possa ter se passado, mostrou-se evasivo dizendo apenas que o sujeito pôs a mão em sua perna.

Cursou e concluiu curso técnico e superior. Pelo seu desejo de sair de casa, conseguiu meios para morar no campus da universidade. Ao se formar, passou a trabalhar em uma empresa estatal, ficando embarcado por longos períodos, o que o levou a solicitar à mãe que gerenciasse sua conta bancária. Em um dado momento, porém, para sua surpresa, descobriu que ela havia dado todo seu investimento aos outros filhos, zerando sua conta. Desentendeu-se com ela, solicitando que nunca mais repetisse tal ato, porém ainda assim delegou-lhe o gerenciamento de suas contas. Deste modo, o paciente utiliza-se da negação, alterando a realidade e idealizando a mãe para suportar a realidade do fato, interna e externamente. Negando, não se mostrava capaz de evitar a situação de risco, permitindo que a mãe continuasse a cargo de sua conta bancária. Percebe-se também a não diferenciação da família, como se o que fosse da mãe ou dos filhos pertencesse a um só.

Contou que não tinha certeza sobre quando fora infectado pelo vírus HIV, entretanto, expôs que teve relações sexuais sem preservativos. Soube do diagnóstico com o início dos sintomas há mais de 10 anos, com o desenvolvimento de um câncer típico de pacientes com HIV, ficando internado em estado grave. Comentou que haja vista a gravidade de seu estado, seus irmãos, com a possibilidade de sua morte iminente, quiseram organizar a partilha dos seus bens, deixando-o desapontado com eles. Desde então, informa haver um expressivo distanciamento entre eles. Negou que os familiares soubessem de seu diagnóstico.

Pouco antes de tomar conhecimento sobre sua doença, Dionísio pediu demissão da estatal em que trabalhava, já que acalentava o projeto de ter uma empresa própria. Investiu em um estabelecimento comercial, cujas obras foram interrompidas no momento em que surgiu seu problema de saúde, não vindo a recuperar o investimento feito. Nesta mesma ocasião, vendeu um apartamento, mas não chegou a receber o dinheiro, o que complicou ainda mais sua situação financeira. Após esse período, conseguiu abrir o estabelecimento, contudo, o primeiro negócio não foi bem sucedido, tentando outro projeto no ramo da hotelaria. Este também não obteve os resultados esperados. Procurando novas alternativas, dividiu o primeiro estabelecimento com um outro empreendimento, exclusivo para homossexuais.

Nas entrevistas com a examinadora, Dionísio se queixava principalmente quanto a sua vida profissional, com relação ao seu trabalho como autônomo. Queixava-se também de sua vida sexual, pois se via às voltas com disfunção erétil desde que soube do diagnóstico de HIV positivo. Assinalou também vir a sua mente o posicionamento materno que condena às práticas homossexuais, considerando que ela desconhecia sua opção sexual.

Naquela ocasião, tinha investido no novo estabelecimento que, segundo ele, vinha dando bons resultados, contudo as questões profissionais continuavam sendo um fator de grande preocupação. Assinalou ser muito cauteloso quanto à higiene e à freqüência do local, com preocupação de não parecer lugar sujo. Diz se preocupar para que o local não seja freqüentado por homossexuais “afetados”, que são de “má classe”.

 

3. Considerações finais

Faz-se uso de mecanismos de defesa para que se possa lidar da melhor forma possível com as situações que se vive. A princípio, é uma forma criativa que o sujeito encontrou para se a ver livre das emoções ou pensamentos insuportáveis para ele. Para que o mesmo possa lidar com as inúmeras situações da vida, terá que utilizar vários mecanismos. Para o objetivo deste trabalho, enfatizei apenas dois: cisão e negação.

O paciente teve uma vida repleta de violência e vivências de desamor por parte da família. Demonstra ter dificuldades para enfrentar estímulos emocionais, que por sua vez podem estar relacionados a problema de controle da afetividade e dos impulsos. Dá sinais de não amadurecimento no relacionamento com as emoções, utilizando processos defensivos, como os já citados.

Percebe-se que Dionísio se expôs a situações de risco ao longo de sua vida, quando tentou fugir de casa, ao pegar caronas e mesmo ao ser infectado pelo vírus HIV. Assim, parece que ele possui dificuldades de se proteger de situações que possam ser perigosas para si mesmo, negando a periculosidade da situação. Estudos apontam que crianças abusadas tendem a repetir situações com risco de abuso e que é possível relacionar “violências sofridas na infância e suas ressonâncias na organização da identidade de gênero” (Leite-Ferreira e Almeida-Prado, 2004: 242).

O paciente divide seus objetos internos e externos em bons e maus. Por exemplo, coloca os homossexuais em duas categorias: os “afetados” e os “não-afetados”. Os primeiros são aqueles que têm expressões e gestos afeminados. Os outros são os bons, os educados, os limpos e os inteligentes. Em um dado momento fala, que seus clientes são doutores, advogados e engenheiros; são pessoas “dignas”. Parece querer acreditar que, assim como aqueles, ele também é digno e honrado. Diferencia seu estabelecimento de lugares onde os “afeminados” freqüentam.

Idealiza a si mesmo como aquele que faz coisas, tem grandes projetos e faz reformas infinitas; porém nega sua parte que se sente “suja”, mal acabada e que precisa sempre de reformas, já que não conseguiu o amor e a aprovação de sua mãe. “Não foi um bom menino”. Com esta cisão, Dionísio se encontra sozinho em um mundo sem sentido; sua angústia o leva a pensar em “fugir para outra dimensão” tentando assim lidar com seu vazio.

Como vimos, a fala de Dionísio é marcada sempre por seus afazeres, projetos e reformas de vida. Entretanto, suas questões afetivas e íntimas são abordadas rápida e superficialmente, sem contato emocional aparente. Minha percepção é que ele conta uma história como se ele fosse um mero espectador. Mas será que ele pode fazer algo a mais que isso? Diz ter a sensação de que, se não tiver planos para a vida, esta não terá mais sentido: - “Para que mais serve a vida além de concluir planos?”. De tantas reformas no exterior, Dionísio parece ter medo do que pode encontrar no seu mundo interno, que sugere estar pleno de sentimentos devastadores e vivências impossíveis de serem vistas. Ele me indaga se seu problema de disfunção erétil teria solução ou se era algo físico, como se sua impotência estivesse relacionada a um algo a mais, impossível de ser visto por ele, mas que de alguma forma parecia estar rondando como um fantasma.

 

Referências bibliográficas

BARROS, Elias Mallet da Rocha. Método psicanalítico. Cienc. Cult., out./dez. 2004, vol.56, no.4, p.22-25. ISSN 0009-6725.

BION, Wilfred Ruprecht. Estudos psicanalíticos revisados.  3ª ed. revisada - Rio de Janeiro: Imago, 1994.

LEITE-FERREIRA, Maria de Fátima e ALMEIDA-PRADO, Maria do Carmo Cintra. Violência familiar e homossexualidade: as vítimas do silêncio. In: ALMEIDA-PRADO, Maria do Carmo Cintra (coordenadora). O mosaico da violência: a perversão na vida cotidiana. São Paulo, Vetor, 2004.

FREUD, Anna. O ego e os mecanismos de defesa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

SEGAL, Hanna. Introdução à obra de Melaine Klein. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

 

 

Notas

* Trabalho desenvolvido no Setor de Psicodiagnóstico Diferencial – da Unidade Docente Assistencial do Hospital Universitário Pedro Ernesto sob supervisão da Dra. Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado e apresentado no XI Fórum de Residência em Psicologia Clínico-Institucional, em setembro de 2007.
** Psicóloga, Residente do 1º ano do Programa de Residência em Psicologia Clínico-Institucional do IP/HUPE/UERJ.
1 O nome é fictício para preservar o anonimato.