ARTIGOS

 

 

Psicodiagnóstico: Uma Abertura de Espaço à Escuta*

Fernanda Viana Martins de Azevedo**

 

 


Introdução

Neste trabalho espero discutir fragmentos do caso clínico de Alice, de 48 anos, encaminhada para o Setor de Psicodiagnóstico da Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto. O pedido de avaliação se deu por um Juiz de Direito de Vara de Família, a partir de uma solicitação de interdição feita pelo companheiro de Alice, que alegava ser a mulher incapaz de gerir sua vida e de manter-se em atividade empregatícia, haja vista suas limitações psíquicas.

Entendo que se faz importante esclarecer que aqui privilegiaremos os aspectos clínicos do processo psicodiagnóstico, bem como o aproveitamento que Alice pôde fazer de seus atendimentos, que viabilizaram um espaço de escuta como resultado da formação de vínculo entre examinadora e paciente.

 

Desenvolvimento

Alice chegou ao Ambulatório de Psiquiatria para uma primeira entrevista acompanhada de seu cônjuge. Em nosso primeiro contato, mostrou-se desconfiada e permaneceu, ao longo do atendimento, de braços dados com o companheiro, dizendo que não via necessidade do atendimento psicológico e que nem mesmo entendia porque o juiz solicitara que fosse atendida por uma psicóloga. Foi-lhe explicado então o porquê da necessidade de vir às sessões.

Alice afirmou não saber se poderia estar presente nas outras marcações. Ao ser questionada do porquê disto, ela afirmou que seu pai e sua mãe, ali presentes, talvez não a autorizassem a voltar à unidade. Ao final da primeira sessão, comentou que os espíritos de seus pais, mortos há já alguns anos, costumam acompanhá-la quando sai de casa e que nem sempre aceitam que ela vá a certos lugares. Foi-lhe dito que se compreendiam suas razões, mas que seria muito importante ela poder vir às sessões marcadas, pois assim poderia ser mais bem conhecida e ela teria um espaço no qual poderia falar de si, de como se sentia e sobre as coisas que pensava. Foi-lhe proposto então que tentasse explicar isso aos pais e que talvez, desse modo, eles poderiam vir a compreender a necessidade de sua participação no processo psicodiagnóstico. Com olhar de desconfiança, disse que tentaria vir outra vez.

Na semana seguinte, retornou e aceitou que o companheiro a aguardasse na sala de espera. Contou-me que sua mãe concordara com sua vinda ao hospital, mas com a condição de que sempre deveria vir vestida de azul. Assim, aos poucos, Alice começou a trazer para as sessões um pouco de sua história, o que nos permitiu observar que o pedido de avaliação psicodignóstica requisitado pelo juiz poderia atender a algo além de sua demanda inicial.

Em cerca de dez encontros, tornou-se possível o desenvolvimento de um espaço de escuta para aquele sujeito, submetido a intenso sofrimento psíquico ao longo de seus 48 anos de vida, e que até então nunca contara com qualquer tipo de apoio psicológico, mas apenas com consultas psiquiátricas que as vezes duravam cerca de 10 - 15 minutos. Dizia que precisava falar, mas que sentia as pessoas distantes e impossibilitadas de compreendê-la (sic).

Contou que ainda criança, ouvia vozes e via coisas que outras pessoas não ouviam nem viam. Seus pais diziam que ela, aos 2 anos, teria visto uma carruagem com pessoas de cristal em seu interior. Posteriormente viu, pela primeira vez, uma serpente que estava sempre pelos cantos ameaçando atacá-la. Contou, com muito pesar, que até aquela data a mesma serpente ainda a assustava e que, apesar de não lhe causar o mesmo espanto de antes, estava ainda a observá-la. Dizia que quando criança a serpente aparecia para ela mesmo quando estava na escola. Sentia-se assustada com o que ouvia e via, tinha dificuldade em prestar atenção às aulas e por isso se admira por ter conseguido completar o primeiro grau (sic).

No início do processo psicodiagnóstico, Alice dizia que ouvir e sentir a presença dos pais, bem como de mais dois espíritos, com os quais conversava durante os atendimentos, não a incomodavam, e que gostava da presença deles. No entanto, ao longo dos encontros um outro discurso foi ganhando espaço em sua fala, pois na maior parte das vezes, em prantos, dizia que não suportava mais as cobranças da mãe, que interferia em tudo, mesmo na cor da roupa que deveria usar para vir ao hospital. Dizia sentir-se vigiada pelos pais em tudo que fazia e perguntava à examinadora o que deveria fazer para que eles a deixassem em paz. Certa vez relatou que, no enterro do pai, época em que a mãe já era falecida, viu os dois, em espírito, ao lado da cova. Seu pai pedia à mulher perdão por tudo de errado que já havia feito.

Dizia que sua mãe sempre se mostrava zelosa com ela e com os irmãos, quanto a questões de alimentação e higiene, mas que não tinha uma relação de carinho com nenhum dos filhos e que falava muito pouco. Muito emocionada, dizia que a mãe batia nela e nos irmãos até tirar-lhes sangue e que, em muitos momentos, se viu fazendo o mesmo com os próprios filhos. Não podia entender porque fazia isso, sentia-se muito perturbada nessas ocasiões, mas parecia ter necessidade de fazê-lo (sic). Bastante angustiada, mencionava que nunca quis machucá-los e que sentia muito pelo mal que lhes provocara. Lamentava-se por constatar que não havia conseguido ser uma boa mãe e que entendia o porquê de seus filhos estarem cada vez mais distantes dela.

Contou que o pai optou por chamá-la Alice porque, anos antes de seu nascimento, ele e sua mulher perderam uma filha ainda muito nova com o mesmo nome. Segundo ela, freqüentemente o espírito da irmã vinha visitá-la no jardim de infância, comentando que costumavam brincar juntas.

Sempre que mencionava o pai, dizia que ele a condenara a ser feia, gorda e peituda, quando contava ainda 19 anos e tinha acabado de ter o primeiro filho. Ele afirmava ainda que ela nunca seria bonita como suas primas (sic). Alice parecia entender a afirmação paterna como um grande castigo, do qual jamais poderia se livrar. Sempre que se dirigia à examinadora pedindo ajuda para que se livrasse das vozes e visões que tinha, bem como dos comandos para que se atirasse debaixo dos carros em movimento, terminava por citar esta fala do pai, a respeito da qual não adiantava se esforçar ou buscar ajuda, pois estaria sempre condenada, que não havia solução para sua vida (sic).

Desejava arrumar um emprego e perguntava à examinadora se conhecia alguém que estivesse precisando de empregada doméstica. Dizia que entendia naquele momento o motivo pelo qual o juiz havia pedido a avaliação psicodiagnóstica, mas que ainda assim achava que podia trabalhar. Quando se separou do primeiro marido, com quem teve seus 5 filhos, esperava poder sustentá-los e, por isso, várias vezes tentou manter-se empregada. Chorando, dizia que seu pai, durante um longo tempo, interferiu junto a quem a empregasse dizendo que ela não tinha condições de saúde para manter-se em um emprego. Se isso não acontecia, da mesma forma não conseguia permanecer trabalhando em um mesmo lugar por muito tempo, pois nas casas de família em que conseguia se estabelecer, os patrões logo se assustavam ao surpreendê-la falando sozinha ou ainda com as ameaças de agressão física que ela fazia, ao sentir-se vigiada ou ameaçada.

Alice dizia que, naquele momento de sua vida, era a presença do novo companheiro que a fazia ter vontade de viver. Não o via como marido, mas como amante e namorado. Assinalou que em seu primeiro casamento somente havia experimentado sofrimento e não queria que essa história se repetisse com “Nego”, como o chamava. Dizia que era ele quem a arrumava para vir aos atendimentos, lavava suas roupas, penteava seu cabelo, preparava seu café da manhã, e que estava sempre ao seu lado.

Suas aflições pareciam se abrandar, enquanto contava sua história ao lado do companheiro, dos momentos que passavam juntos, das tardes em que comiam pipoca e das noites em que conversavam no quintal de casa. O romance com “Nego” apontava para uma calmaria e paz face à loucura e a todo seu sofrimento.

Diante da história de vida que Alice nos apresentava, bem como do material obtido através dos testes aplicados, entendemos em equipe que se tratava de um quadro de psicose desde a infância, não reconhecido e não tratado, que no presente se apresentava como esquizofrenia com características hebefrênicas.

Neste momento, achamos relevante destacar algumas partes das conclusões às quais chegamos acerca do quadro psíquico de Alice.

Observamos que, nas circunstâncias em que a paciente se encontrava, ela apresentava um rebaixamento no nível intelectual, o que parecia ser intensificado pela fragmentação psicótica e pelas constantes perturbações no contato com a realidade.

Alice se encontrava bastante vulnerável em seu contato com a realidade, o que proporcionava sentimento de colapso iminente e um deficiente controle do ego sobre suas barreiras defensivas, o que justificava um forte desejo em afastar-se ao máximo possível do convívio em sociedade, apesar do ressentimento da falta de contato e do isolamento. Além disso, constatou-se uma perda de sentido de realidade, com produção delirante e alucinatória de forma bastante constante em seu dia a dia. Ao longo dos atendimentos, contou-me que no ambulatório de psiquiatria existiam alguns espíritos de médicos já mortos, que teriam trabalhado na unidade, tentando fazer contato com ela para avisar-lhe sobre pessoas más que poderiam machucá-la. Alice também dialogava com espíritos, que estavam sempre junto dela, enquanto contava-me sobre sua vida ou realizava uma atividade proposta.

Entendemos que Alice se via às voltas com tendências psíquicas opostas que geravam intensos conflitos e sentimentos de confusão e insatisfação. Por este motivo, eram possíveis reações imprevisíveis, hostis e anti-sociais. Apesar disso, observava-se um grande esforço para a manutenção de uma pseudonormalidade e de um equilíbrio emocional, o que de fato parecia não poder ser alcançado.

Alice demonstrava ter sentimentos ambivalentes relativos à força e fraqueza, e à autonomia e dependência, sendo que se observava predominar a necessidade de proteção e a superdependência com relação ao outro. A isso somava-se a presença de sentimentos de isolamento e desamparo relativos à figura materna.

Mesmo que apresentasse uma acessibilidade diminuída e houvesse sinais de sentimentos de hostilidade e tendências oposicionistas, Alice buscava por satisfação e mostrava necessidade de aceitação por parte de parentes, especialmente dos filhos, o que em seu caso se transformava em um grande foco de ansiedade.

Finalmente, concluímos que, circunstancialmente, a paciente não apresentava recursos para manutenção de um controle das situações que vivenciava. Mostrava-se como pessoa dependente, sem condições para uma vida autônoma.

Já ao final do processo psicodiagnóstico, Alice expressou o quanto eram especiais aqueles momentos em que podia falar e sentir-se ouvida e acolhida, dizendo mesmo que gostaria de dar continuidade ao atendimento. Foi-lhe explicada tal impossibilidade, junto ao Setor de Psicodiagnóstico, mas que ela poderia iniciar uma psicoterapia em outro espaço, com outro terapeuta. Perguntou então se haveria algum problema em pedir dinheiro às pessoas que conhecia para que assim pudesse pagar um espaço onde continuaria a ser ouvida pela examinadora.

A demanda de psicodiagnóstico constituiu-se para aquele sujeito, ao que tudo indica, como um dispositivo deflagrador da fala, que permitia a Alice, de alguma forma, ultrapassar as limitações impostas, ao longo de toda sua existência, pela fragmentação psicótica. Em meio a todo sofrimento psíquico havia um sujeito desejante.

 

Referências Bibliográficas:

BOHM, Edwald. Manual Del Psicodiagnóstico de Rorschach: para psicólogos, médicos y pedagogos. Madrid: Ediciones Morata, S.A., 1979.

_____________. Vademecum Del test de Rorschach ( Tablas auxiliares para su aplicacion). Madrid: Ediciones Morata, S.A., 1978.

CLAWSON, Aileen. Bender infantil, Manual de diagnóstico clínico. Porto Alegre: Artes Médicas, 1980.

VILLEMOR-AMARAL, Anna Elisa de. As pirâmides coloridas de Pfister. São Paulo: Centro Editor de Testes e Pesquisas em Psicologia, 2005.

 

 

Notas

* Setor de Psicodiagnóstico Diferencial da Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria/HUPE/UERJ – Supervisora: Dra. Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado. Trabalho apresentado no XI Fórum de Residência em Psicologia Clínico-Institucional, em setembro de 2007.
** Psicóloga, Residente do 1º ano do Programa de Residência em Psicologia Clínico-Institucional do IP/HUPE/UERJ.