ARTIGOS

 

 

A atuação do Residente de Psicologia nos Grupos de Pré-consulta*

Raquel Moreira Pádova**

 

 


Introdução

A questão que analiso neste trabalho, se refere à atuação do psicólogo nos grupos de pré-consulta do pré-natal.

O fato de ser convocada a coordenar uma atividade educativa junto com enfermeiros e assistentes sociais fez com que eu me perguntasse o que era esperado do psicólogo e quais seriam sua função e importância nesses grupos, dado que, seguindo o referencial psicanalítico, o objetivo da atuação do psicólogo não é pedagógico.

Então, para pensar uma função possível do psicólogo nessa atividade, foi necessário conhecer as bases teóricas e metodológicas concernentes a ela para enfim propor linhas de atuação do psicólogo na coordenação dos grupos de pré-consulta.

 

A pré-consulta

 A pré-consulta é uma atividade de “Educação em Saúde”, coordenada por uma equipe multidisciplinar composta de enfermeiros, assistentes sociais e psicólogos (em sua maioria residentes). A cada dia, é formado um grupo aberto  com as gestantes que aguardam a consulta médica de pré-natal. No grupo, a equipe propõe trabalhar junto às gestantes um tema específico referente à saúde da mulher, gestação e puerpério. Contamos atualmente com oito temas chaves: “aleitamento materno”, “aparelho reprodutor e sexualidade”, “mudanças na gestação”, “desenvolvimento fetal”, “direitos da mulher e da criança”, “violência doméstica”, “planejamento familiar e as doenças sexualmente transmissíveis” e “parto”.

A escolha desses oito temas específicos partiu do recolhimento das dúvidas e assuntos mais comuns trazidos pelas gestantes, e também de uma preocupação com os principais problemas de saúde da mulher apontados por dados epidemiológicos. Dentre eles podemos citar a violência doméstica, as doenças sexualmente transmissíveis e as desigualdades nas relações de trabalho, principalmente em se tratando de gestantes.

Em períodos anteriores, os coordenadores não trabalhavam com temas fixos na pré-consulta.   Era proposto nos grupos que as gestantes falassem quais assuntos gostariam de abordar. No entanto, esse método trazia alguns inconvenientes porque surgiam várias dúvidas e assuntos diferentes, que acabavam sendo abordados rapidamente, pois os coordenadores não davam conta da demanda de informação e necessidade de expressão das usuárias. Por esta razão, optou-se em trabalhar com temas, mas de um modo em que os coordenadores ainda estivessem abertos às demandas específicas de cada grupo, dando escuta a outros assuntos que pudessem surgir.

A forma como estes temas são trabalhados nos grupos é norteada por alguns princípios básicos estabelecidos pelas políticas de saúde atuais1 e por um modelo específico de atuação em educação em saúde. 

No que diz respeito aos princípios estabelecidos pelas políticas de saúde, destaco dois: o oferecimento de uma atenção integral ao indivíduo, realçando os aspectos psicológicos, biológicos e sociais envolvidos no processo da gestação ou em qualquer processo de adoecimento; e em que as ações  de saúde contribuam para que os indivíduos possam identificar suas principais necessidades de saúde e participar de maneira efetiva na formulação e controle da execução das políticas de saúde, a partir de informações a respeito do próprio corpo e do sistema de saúde como um todo.

Já o modelo de educação em saúde que a equipe da pré-consulta vem apostando é aquele cuja autora Mônica de Assis (1998) no artigo  “Educação em Saúde e Qualidade de Vida: Para Além dos Modelos, a Busca da Comunicação”  caracteriza como  um modelo que preza os indivíduos como sujeitos nas ações de saúde, ou seja, que considera que suas escolhas e comportamentos inseridos numa dimensão existencial e cultural também são responsáveis pelas trajetórias sociais e pessoais. Seguindo essa linha, a prática da educação em saúde se baseia em atividades que priorizam o diálogo entre os profissionais de saúde e a clientela, transitando de um discurso normativo para um discurso comunicativo sobre a qualidade de vida. Isso não impede que aspectos técnicos e científicos também sejam abordados.

Assim, o objetivo da educação em saúde, é propiciar aos sujeitos conhecimentos sobre o funcionamento das instituições, sobre o discurso médico e sobre o próprio corpo, para que estes possam, a partir daí, enfrentar os problemas de saúde tendo maior consciência, autonomia e possibilidade de escolha. Portanto, visa propiciar aos sujeitos instrumentos que lhes permitam perceber suas ‘necessidades de saúde’ e saná-las a partir de embates nos planos coletivo e individual.

Essa proposta de atuação que transcende em objetivos a mera transmissão de informações permite a entrada do psicólogo com referencial psicanalítico, que acrescenta algo novo por entender que a possibilidade de escolha, autonomia e saúde passa também pela consideração daquilo que justamente foge à racionalidade, a saber, a verdade do sujeito. Para isso o psicólogo parte de uma referência específica, que é a escuta do sujeito.

Uma escuta do sujeito, direciona o psicólogo a explorar a dimensão subjetiva presente no evento de estar grávida e tornar-se mãe. Ao escutar as gestantes fica evidente o quanto a gestação mobiliza psíquica e afetivamente a mulher, confrontando-a com experiências e fenômenos muitas vezes estranhos a ela, onde a posse de informações objetivas (como é o processo de parto, como amamentar e o que ocorre com o corpo na gestação) não é suficiente para assegurar o enfrentamento de tais experiências e transformações sem problemas ou sofrimento.

Autores como Houzel, D (2004) e Bydlowiski, M (2000) falam das conseqüências da maternidade no psiquismo da mulher. A maternidade se constituiria como mais uma fase no desenvolvimento psicoafetivo, trazendo modificações em sua vida psíquica, com processos que implicariam níveis consciente e inconsciente do funcionamento mental. Houzel afirma que esse processo confronta o sujeito com transformações identificatórias profundas ditadas pela revivência de antigos conflitos. Bydlowiski fala do momento da gestação como um período de crise maturativa, ou seja, esse fenômeno implicando numa reorganização psíquica da mulher para dar conta dessa nova função que terá que exercer. Uma das conseqüências disso é a ocorrência nas grávidas, de um estado de “transparência psíquica” aonde os fragmentos do pré-consciente e do inconsciente chegam mais facilmente à consciência. Reminiscências antigas e “fantasmas” habitualmente esquecidos afluem com força à memória sem serem barrados pela censura, além disso, angústias primitivas podem ser despertadas por um início de gestação.

Segundo Solis-Ponton, L. (2004) o estado de “transparência psíquica” descrito por Bydlowiski, teria relação com o fato de que durante a gestação e nos primeiros anos do bebê, a mulher vive a evocação de sua infância e das relações que ela teve com a própria mãe. Isto provoca uma regressão psíquica que a conduz a uma identificação com o bebê e também a uma corrente de identificação com sua mãe para assim poder assumir a função materna, se adaptando ativamente às necessidades do bebê.

Portanto, a gestação é algo que mobiliza significativamente a mulher. Ela remete à relação original mãe-bebê e a aspectos concernentes à sexualidade infantil. Diante disto, cada mulher vive esse momento de forma particular dependendo de sua história psicossexual.

Ao escutarmos a mulher nesse período em que está envolvida com a maternidade, percebemos ser comum em seu discurso, fantasias, representações e demais elementos que remetem a processos psíquicos presentes também em fases primitivas do desenvolvimento psicossexual, demarcadas por Freud (1905) em seu artigo “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” como fase oral, anal e fálica. Em cada uma destas, a atividade de uma zona erógena se sobressai, tendo influência sobre os processos mentais do sujeito.

Marie Langer (1981), em seu livro “Maternidade e Sexo”, afirma que a mulher, ao amamentar, revive sua própria lactância. Por traz do ato de amamentar podem estar uma série de fantasias da mãe que remontam a afetos e representações de seu período enquanto bebê. Isto pode favorecê-la, identificando-se com uma mãe ideal que alimenta bem; ou pode provocar entraves pela emergência de fantasias ameaçadoras.

A revivência na mulher de tendências orais-sádicas pode levá-la à percepção inconsciente da própria agressividade que outrora foi resposta a frustrações orais, experimentadas por ela enquanto bebê, como agressões por parte da mãe. A mulher, agora adulta, pode projetar essa tendência sádica no seu leite, considerando-o então como algo perigoso, ou pode temer pela integridade de seu bebê, devido à existência desses impulsos em seu mundo interno. Ela também pode projetá-los sobre o próprio bebê, assim este poderia devorá-la, machucá-la.

Marie Langer (op cit) fala também da angustia do parto como uma reedição de uma angustia primitiva, a da separação da mãe e defende que é importante que nesse momento a mulher seja compreendida e acolhida pelo médico, além de ser orientada e esclarecida sobre o processo fisiológico do parto de forma que ela possa colaborar ativamente.

Essas descrições a respeito das manifestações da sexualidade infantil na gestação nos permitem perceber como durante a gravidez e puerpério, a mulher pode conviver com dois registros diferentes desses eventos. Um racional e consciente, adequado a concepções compartilhadas pelo seu entorno social e pelas ciências médicas e outro inconsciente, com afetos, representações e fantasias, que em certos momentos podem chegar à consciência.

Assim, a gestação convoca a mulher a um trabalho de elaborações psíquicas, a fim de dar conta de elementos de sua verdade subjetiva mobilizadas pela experiência de tornar-se mãe.

Na maternidade, a história desejante da mulher é revisitada, podendo levar à atualização de conflitos psíquicos. Assim, destacamos também a importância do lugar simbólico ocupado pela criança na história de cada mulher, pois isto irá marcar o modo como ela viverá a chegada do bebê real.

Trago o caso de S. para ilustrar isso. Ela estava em sua sétima gestação e no puerpério apresentava-se muito calada, às vezes chorosa, sem deixar de manter um vínculo afetivo com sua filha. Tinha aparência descuidada, envelhecida e situação financeira difícil. Chamava-me a atenção o modo carinhoso como maternava. Ao atendê-la foi possível compreender seu sofrimento. Vivia um drama pessoal que existia mais psiquicamente do que na realidade externa. S tinha sido a sétima filha de uma família bastante numerosa. À época de seu nascimento, sua mãe que criava os filhos praticamente sozinha, passava por sérias dificuldades financeiras, o que a levou a dar S para uma outra mulher.

S. contou que várias vezes, na gestação atual, tivera o pensamento de dar sua filha para adoção em vista de suas dificuldades financeiras. Mas ao mesmo tempo S. afirmava que seus filhos mais velhos apoiavam essa gestação e prometiam assegurar-lhe toda assistência necessária para ajudá-la a criar a filha. O fato é que esse pensamento de dar a filha, causador de muita culpa e sofrimento, apontava um destino que estranhamente S. sentia como inevitável para a sétima filha. Nos atendimentos, S encontrou lugar para falar do seu destino e do sofrimento envolvido nele.

Para o sujeito, verbalizar tramas psíquicas e fantasias, buscar colocar em palavras o que muitas vezes se apresentam apenas como traços de memórias ou afetos, são tarefas que fazem parte do processo de elaboração de conflitos e elementos psíquicos que não conseguem ser pensados e resolvidos. A pré-consulta é um espaço que algo dessa tarefa pode ser suscitada.

Assim, o psicólogo pode exercer nos grupos de pré-consulta a função de provocar a circulação da fala, dar voz às gestantes, se eximindo nesses momentos de oferecer um saber pronto, para favorecer que essas mulheres possam construir um saber próprio sobre sua gestação. O psicólogo pode realizar intervenções que vão no sentido de provocar a discussão e o questionamentos de comportamentos ou concepções cristalizadas que interferem de maneira problemática na vivência da maternidade. Outro viés de atuação é favorecer a troca de experiências e saberes entre as próprias gestantes.

 É importante ressaltar que essa construção de um saber próprio sobre a gestação passa também pela aquisição de informações técnicas e científicas que dizem respeito a processos fisiológicos ou a questões dos direitos da mulher e criança.    Em muitos momentos, a pré-consulta ganha uma tônica mais técnica e informativa na abordagem da maternidade, por conta da demanda das próprias usuárias que fazem muitas perguntas sobre processos fisiológicos envolvidos no parto e gestação.

Para a maioria das gestantes, esse espaço de compartilhar informações, experiências, medos, fantasias, tristezas e alegrias funciona como um ponto de suporte que as auxilia a lidar com mudanças e reestruturações provocadas pela gestação. Dentre elas, podemos citar as transformações no corpo e nas relações com familiares (pais, esposo, outros filhos), a assunção de um novo papel social e a convocação a assumir a função materna.

No entanto, há gestantes para as quais somente o dispositivo grupal nos moldes da atividade de pré-consulta, não possibilita conter angustias e pensamentos causadores de um intenso mal-estar, às vezes reforçado por sintomas neuróticos ou psicóticos. A partir daí cabe ao psicólogo encaminha-la para acompanhamento individual.

 

Conclusão

Partindo de um modelo específico de atuação em “Educação em Saúde” e pela consideração da complexidade envolvida no processo de tornar-se mãe, proponho que uma das funções possíveis a ser exercida pelo psicólogo nos grupos de pré-consulta, é permitir às mulheres expressarem suas vivências subjetivas relacionadas à maternidade, sendo esta, uma ação que pode favorecer a elaboração de conflitos e mudanças que ocorrem na gestação, assim como o aprendizado e a formulação de novos modos de lidar com os fenômenos da maternidade.

Desta forma, a presença e atuação do psicólogo na pré-consulta tem sua  importante porque visa dar voz e escuta às gestantes e também porque pelo maior contato com estas, favorece a construção de um vínculo inicial. Pela proximidade, a figura do psicólogo se torna menos enigmática e ameaçadora. O psicólogo deixa de ser “coisa para maluco”, como tantas dizem, e se torna mais um ponto de apoio que essas mulheres podem encontrar durante a gestação e puerpério.

 

Referências Bibliográficas

ASSIS, M. Educação em Saúde e Qualidade de Vida: Para Além dos Modelos, a Busca da Comunicação in Estudos em Saúde Coletiva, no.169, nov. 1998.

BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher: Princípios e Diretrizes. Brasília, 2004.

BYDLOWISKI, M. & GOLSE, B. O Olhar Interior da Mulher Grávida. Transparência Psíquica e Representação do Objeto Interno. in Correa Filho L. et al (org). Novos olhares sobre a gestação e a criança até os três anos. LGE Editora: Brasília, 2000.

FREUD, S. (1905)  Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade  in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol, VII, ed Imago: Rio de Janeiro, 1980.

LANGER, M. Maternidade e Sexo: Estudo Psicanalítico e Psicossomático. Porto Alegre: Artes médicas, 1981.

SOLIS-PONTON, L. A construção da parentalidade in Pereira da Silva, M. C. & Solis Ponton, L (org). Ser Pai, Ser Mãe: Parentalidade: Um desafio para o terceiro milênio. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.

 

 

Notas

* Trabalho desenvolvido no Núcleo Perinatal do HUPE, sob a supervisão da Drª Susan Guggenheim e apresentado no XI Fórum de Residência em Psicologia Clínico-Institucional, em setembro de 2007.
** Psicóloga, residente do 2º ano do Programa de Residência em Psicologia Clínico-Institucional do IP/HUPE/UERJ.
1 Cf: BRASIL (2004)