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Trabalhando em Equipe e Trabalhando a Equipe: Limites e Possibilidades da Inserção da Psicologia na Equipe Multidisciplinar*

Ana Beatriz R.de Castro; Renata O. Fidelis; Taís D. Donati**

 

 


O cotidiano do serviço de cirurgia cardíaca está repleto de situações que mobilizam a equipe, que trabalha com uma rotina de atendimento mais intensiva em um clima de tensão e apreensão diante da morte iminente. Além da tensão da equipe, convivemos também com a aflição dos pacientes e seus familiares.

Diante de um protocolo de procedimentos definidos, qual o espaço para se pensar no impacto da morte ou nos efeitos da cronificação dos pacientes sobre a equipe?  Parece que tudo ocorre quase que no automático, em um espaço amplamente biotecnológico, e, essas questões ficam quase que sufocadas, mas provocando efeitos sobre todos. A partir disto, nos propomos a pensar qual a importância da reunião de equipe (coordenada pela psicologia) realizada no setor e como esta pode funcionar construindo um espaço, onde aquilo que provoca angústia possa ser apalavrado.

Tendo como ferramenta o referencial teórico da Análise Institucional, entendemos que instituição não se confunde com estabelecimentos que são conjuntos prático-concretos organizados para determinados fins. Diferente destes, a instituição é um conceito que explica o modo pelo qual se reproduzem nas organizações às formas das relações sociais dominantes na sociedade. Ela está presente ou atravessa todos os níveis de uma dada formação social. Coimbra (1995) citando Lourau afirma que este conceito designa a produção e reprodução das relações sociais dominantes tanto nos pequenos grupos como na estrutura das organizações.

Sendo assim, instituição é um conceito que implica na análise das formas instituídas (naturalizadas e fixadas como: lei, regulamento, hora...), das forças instituintes (linhas flexíveis, desejos e necessidades da criação de novas normas e formas...) e dos processos de institucionalização (reconhecimento de uma nova norma). Ao se esquecer as origens do instituído, este é tomado como natural, quando na verdade é produto de uma história, que fica oculta. Explicitar isto que está oculto, produzir um estranhamento sobre aquilo que está naturalizado é um trabalho difícil, mas que deve ser realizado constantemente.

Mas, como viabilizar que a reunião de equipe possa funcionar como um espaço de análise do funcionamento institucional diante das dificuldades de se reunir as pessoas que fazem parte do processo: “hoje o CTI está muito agitado, não vai dar para ir à reunião.”, se justificava uma enfermeira.  Entretanto, algumas situações provocam uma necessidade de reflexão. Situações estas que se tornam analisadores dos movimentos institucionais. Os analisadores são elementos introduzidos por diferentes tipos de contradições na lógica habitual da organização que enuncia as suas determinações, explicitando as operações que revelam a estrutura institucional.  Para Lapassade (1977) é o analisador que realiza análise. Coimbra (1995) afirma que:“as situações falam por si, analiticamente, mais que qualquer analista, posto que também está atravessado por ela”.

A partir da “revelação” feita pelo analisador podemos pensar num outro dispositivo/conceito da Análise Institucional que é fundamental neste trabalho, a análise de implicações.  Diferente da metafísica cartesiana que assume uma relação de objetividade e observação entre sujeito e objeto, a análise institucional desnaturaliza o lugar de observador e inclui na análise o lugar que este ocupa nas relações institucionais.  “Estar implicado (realizar ou aceitar a análise das minhas próprias implicações) é ao fim de tudo, admitir que eu sou objetivado por aquilo que pretendo objetivar: fenômenos, acontecimentos, grupos, idéias, etc.” (COIMBRA, 1995).

Uma enfermeira dizia em uma reunião: “o médico prescreveu e a enfermagem não pode questionar.” “O cirurgião só opera, a gente é que agüenta as complicações do pós (-operatório)”, comentário da equipe de enfermagem, que se contrapõe a um relato do cirurgião em outra reunião, falando o quanto ele ficava mobilizado quando o paciente que ele operou progredia mal.  Podemos perceber que há uma hierarquia cristalizada e um questionamento a respeito, mas essencialmente em forma de queixa, que não coloca em análise as implicações de cada membro da equipe referente à (re)produção destes fatos.

Existem discursos circulando que precisam de um espaço onde haja troca, um espaço onde cada profissional possa se colocar e propiciar a comunicação e a mudança de padrões e discursos cristalizados. É preciso que se saia de uma posição de queixa para se analisar a implicação de cada um dentro da equipe. Diante desta tarefa árdua será que há uma abertura possível para se pensar a importância da dita “reunião da psicologia”?

Reunião da psicologia ou reunião de equipe? Reflexões sobre a configuração deste espaço.

O espaço da reunião de equipe foi construído através da demanda de alguns membros da equipe de enfermagem dirigida à psicóloga do setor. Este espaço foi pensado como um lugar de troca entre os membros da equipe multidisciplinar: médico, cirurgião, enfermeiro, psicólogo, nutricionista, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, etc. Desde que começou a funcionar percebe-se um movimento de esvaziamento e presença da equipe que varia de acordo com a urgência das situações vivenciadas e as necessidades de dividi-las e com a implicação de cada um dos membros. Mesmo nos períodos de esvaziamento, a posição da equipe de psicologia é manter o espaço, buscando atrair os profissionais com definição de temas, atividades de dinâmica de grupo, entre outras atividades.

Diante do esforço da equipe de psicologia em manter o espaço é comum vê-lo definido como “reunião da psicologia”. Entretanto, o esforço é de justamente fazer com que a equipe se aproprie deste espaço, mas entendemos as dificuldades que perpassam este movimento da equipe. Freqüentar um espaço onde se questionam as condutas, onde possam colocar suas dificuldades e ouvir as dificuldades do outro, sem pessoalizar o que é processo, tem se mostrado muito difícil.  Além disso, a urgência orgânica e as dificuldades institucionais (equipe reduzida, esquema de plantões) também colaboram para a ausência da equipe neste espaço.

“Por outro lado, não há como mudar as formas de relacionamento nas práticas de saúde sem que aumentemos os graus de comunicação, de conectividade e de intercessão (Deleuze, 1992) intra e intergrupos nos Serviços e nas outras esferas do sistema. Chamamos de transversalidade (Guattari, 1981) o grau de abertura que garante às práticas de saúde a possibilidade de diferenciação ou invenção, a partir de uma tomada de posição que faz dos vários atores, sujeitos do processo de produção da realidade em que estão implicados. Aumentar os graus de transversalidade é superar a organização do campo assentada em códigos de comunicação e de trocas circulantes nos eixos da verticalidade e horizontalidade: um eixo vertical que hierarquiza os gestores, trabalhadores e usuários e um eixo horizontal que cria comunicações por estames. Ampliar o grau de transversalidade é produzir uma comunicação multivetorializada construída na intercessão dos eixos vertical e horizontal”.
(BARROS, R. B.; PASSOS, E, 2005)

Assim, para que a reunião possa funcionar como um espaço potente de trocas tem que haver um aumento do grau de transversalidade da equipe, um aumento do produto da elucidação das relações entre a horizontalidade e a verticalidade. Havendo uma clareza dos diversos tipos de entrecruzamentos (políticos, sociais, libidinais, ideológicos...) que atravessam nossas vidas. Apenas assim podemos entender melhor a dimensão coletiva das produções institucionais.

Trabalhar a equipe: função do psicólogo?

Algumas vezes, o psicólogo é visto e se vê como um corpo estranho à equipe, alguém que observa, analisa, avalia e propõe mudanças à equipe, sem se questionar sobre sua implicação. Será que não somos atravessados também pelas dificuldades de se trabalhar em equipe? Será que também não ficamos mobilizados com a morte de um paciente?

Entendemos que todos os profissionais que trabalham em uma instituição são atravessados por dificuldades semelhantes e lidam, cada saber com sua especificidade, com uma pessoa que não pode ser vista compartimentalizada.

A formação do psicólogo o capacita a ouvir e trabalhar as angústias do paciente e, por que não, da equipe. Só devemos nos lembrar que também fazemos parte desta equipe. Garantir que a palavra circule e que os diferentes discursos possam dialogar é uma posição ética que deve ser defendida pelo psicólogo. Só assim podemos falar de um trabalho de e com a equipe.

Passaremos agora ao relato de duas situações vivenciadas no serviço de Cirurgia Cardíaca que funcionaram como analisadores dos processos institucionais:

 

Primeira situação:

Um paciente estava internado no CTI cardíaco há meses, apresentando problemas nas articulações e com complicações decorrentes da própria internação. Sem melhora considerável do quadro, já havia sido entubado sucessivas vezes, e naquele momento recebia apenas cuidados paliativos. Como já havia chegado muito debilitado, o paciente nem chegou a passar por uma conduta cirúrgica. A equipe apresentava dificuldade em lidar com o caso, mas ia repetindo os procedimentos quase que automaticamente.

Em uma reunião de equipe, uma residente de enfermagem trouxe o tema para a discussão: a dificuldade de investir em um paciente cronificado e o quanto isto mobilizava a equipe. Com o assunto em pauta, todos puderam falar de suas angústias frente a esta situação. A psicóloga pode falar de sua dificuldade em atender o paciente, uma vez que este não conseguia falar. Uma enfermeira chegou a dizer que quando ocorre de um paciente ficar muito tempo internado ele acaba se tornando uma “mobília do CTI”. Esta declaração parece fazer referência à dificuldade da equipe em lidar com a situação, uma forma de não entrar em contato com o sentimento de impotência que o paciente despertava na equipe. Há um limite do que pode ser feito. Caso não se considerem os limites inerentes a todo profissional cai-se na idéia de um fracasso, quando na verdade está se fazendo o que é possível.

Um espaço onde aquilo que angustiava a equipe pudesse ser apalavrado foi essencial para propiciar a discussão multidisciplinar. Pôde-se perceber que todos estavam passando por dificuldades semelhantes que interferiam no tratamento do paciente. Possibilitar que isto fosse compartilhado em um espaço coletivo favoreceu a compreensão de que os problemas vivenciados em uma instituição não podem ser pessoalizados, pois atingem a todos. Por outro lado, ao se trazer isto à tona, permitiu-se que cada um pudesse se questionar sobre sua própria implicação naquela situação.

 

Segunda situação:

Paciente idosa, com um quadro de emagrecimento importante nos últimos meses, foi internada no serviço e aguardava a cirurgia cardíaca. O quadro da paciente chamava muita atenção da equipe, que colocava em questão se esta suportaria uma operação de tal porte, ou seja, indagavam sobre a viabilidade da cirurgia no estado nutricional e fragilizado em que a paciente se encontrava.  Estas falas e questionamentos ocorriam nos corredores, mas não eram levadas à reunião de equipe.  Os cirurgiões decidem pela cirurgia.  No pós-operatório, a paciente tem uma complicação em seu quadro clínico e em poucos dias vem a óbito.

Após a morte da paciente o caso funcionou como um analisador e foi levado à reunião de equipe.  A nutricionista afirma que com o quadro nutricional em que a paciente se encontrava ela não resistiria a um pós-operatório, e que se chateava por não ter sido consultada para a decisão da cirurgia. Diz ainda que gostaria de ter tido mais tempo para preparar nutricionalmente melhor a paciente, visto que não se apresentava urgência para cirurgia. Algumas enfermeiras falaram sobre a dificuldade de também não ser discutido com elas os casos que iriam para cirurgia, sendo que elas é que cuidariam dos pacientes no pós-operatório.  Estas mencionaram que havia casos na fila de espera da cirurgia que teriam melhores chances de se recuperar e que estes às vezes acabavam morrendo pela demora.

Quando questionadas sobre o porquê não haviam discutido com os cirurgiões o caso antes da cirurgia, estas trouxeram que o poder de decisão é do médico cirurgião e que não adiantava discutir os casos.

Para ajudar a pensar esta questão é importante trazermos um dos modos de funcionamento da reunião, pois esta ficava mais cheia nos dias em que os cirurgiões estavam presentes. Os profissionais vinham e se posicionavam em um lugar de escuta frente à fala dos cirurgiões. Com este caso foi evidenciado um funcionamento desta instituição em um movimento verticalizado, assim como manutenção destas hierarquias por parte da equipe.

Durante as discussões várias falas ecoaram sobre a falta, neste espaço, de uma reunião clínica multidisciplinar que pudesse discutir tanto os casos que iriam para a cirurgia, como o plano terapêutico dos pacientes que já estavam internados, assim como o desejo de que estas reuniões acontecessem. Havia uma demanda da equipe de participar da definição das condutas, afinal foi o cirurgião quem decidiu pela cirurgia. Não se trata de questionar o papel específico do médico que é o profissional que está habilitado para avaliar o quadro cardíaco do paciente e a necessidade/urgência de uma cirurgia. No entanto, podemos perceber um pedido nestas discussões de se participar deste processo, afinal a equipe toda participa dos cuidados no pré e pós-operatório.

Porém num outro momento as falas iam na direção contrária, afirmando as impossibilidades de se construir este espaço de discussão. “É importante a atuação multidisciplinar, mas o médico é o maestro, é ele quem rege a orquestra”, argumentava uma residente de medicina em uma reunião de equipe. Notamos que ao mesmo tempo em que há um movimento instituinte perante certas cristalizações institucionais, que problematiza e propõe mudança, há uma dificuldade de se movimentar, se modificar e de analisar o modo como cada um se implica neste processo e o que estão (re) produzindo. O lugar de cada membro da equipe multidisciplinar deve ser repensado e discutido. Assim faz-se necessário durante a reunião de equipe estar atento a estes movimentos e indagá-los para não cair no engodo da pura reprodução sem análise destas hierarquias e cristalizações.

 

Considerações finais

Através do que foi exposto podemos pensar como a reunião de equipe pode funcionar como um espaço potencializador para a realização de um trabalho transdisciplinar, um espaço de reflexão e análise das naturalizações do instituído, mas também como em alguns momentos ela acaba apenas por reproduzir comportamentos, atitudes e discursos já enrijecidos.

Favorecer que o espaço seja provocador de analisadores não é tarefa fácil, principalmente quando o discurso dominante tende a diminuir a importância da subjetividade e das especificidades de cada caso, bem como a singularidade de cada profissional.  O analisador é aquele que introduz equívoco na lógica da organização explicitando sua estrutura institucional.

E como a psicologia, que também é parte da equipe pode atuar neste contexto? Não devemos esquecer que fazendo parte da equipe também somos perpassados por todos os atravessamentos institucionais e que assim como o restante da equipe estamos de alguma forma implicados com aquilo que acontece na rotina do serviço. Nosso olhar jamais poderá ser de “mero observador”.

Permitir e sustentar o espaço e o lugar da reunião junto à equipe de saúde do serviço é tarefa da equipe de Psicologia, trabalho este em constante construção, que possibilita uma contínua invenção dos modos de se trabalhar em equipe, criando e reinventando o cotidiano do serviço.

 

Referências Bibliográficas

BARROS, R. B.; PASSOS, E. Humanização na saúde: um novo modismo?. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, São Paulo, v. 9, n. n.17, p. 389-394, 2005. Referências adicionais: Brasil/Português; Meio de divulgação: Impresso; ISSN/ISBN: 14143283.

BLEGER, J. Psicohigiene e Psicologia Institucional. P.A., Artes Médicas, 1984.

COIMBRA, C. M. B. (1995) Os Caminhos de Lapassade e da Análise Institucional: uma empresa possível? Em Revista do Departamento de Psicologia – UFF, V.7-Nº1/ P.52-80.

GUATARRI, F. Introdução a Psicoterapia Institucional: in Tempo Brasileiro, 35, 1973, 72-86.

LAPASSADE, G. As instituições e a prática institucional in Grupos, Organizações e instituições. R.J. Francisco Alves, 1977.

LOURAU, R. (1993). Análise institucional e práticas de pesquisa. Rio de Janeiro: UERJ.

RODRGUES, H. de B. Conde; SOUZA, V.L.B. (1991). A análise institucional e a profissionalização do psicólogo. Em Kamkhagi, V.R. & Saidon, O. Análise Institucional no Brasil. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos.

 

 

Notas

* Trabalho realizado no serviço de Cirurgia Cardíaca, sob a supervisão da psicóloga Sheila Orgler e apresentado no XI Fórum de Residência em Psicologia Clínico-Institucional, em setembro de 2007.
** Psicólogas, Residentes do 1º ano do Programa de Residência em Psicologia Clínico-Institucional do IP/HUPE/UERJ