ARTIGOS

 

 

A urgência como questão no setor de Cirurgia Cardíaca*

Gisele da Silva Bandeira**

 

 


“Toda urgência engendra uma superação pela palavra”. Essa afirmação de Lacan nos lança à questão imprescindível do possível da prática “psi” no enquadre de uma instituição hospitalar cuja rotina são as situações emergenciais e as urgências que a atravessam todo o tempo e que requerem pronto socorro. Num hospital, diante da diversidade de discursos e saberes, o psicólogo é mais um chamado a responder ao sofrimento humano e o faz com uma ação que necessariamente se difere daquelas agenciadas pelo discurso médico ou outros. Nem medidores de pressão, respiradores ou dobutamina, seu instrumental de trabalho é a palavra; a presença que situa um lugar para a fala do sujeito através da oferta da escuta de sua singularidade, o que leva o profissional “psi” ao desafio de sustentar a especificidade de seu trabalho num espaço onde se busca a cura e as situações exigem pressa. Mas como o psicólogo pode atuar frente a esse chamado na urgência? E a qual urgência se trata de responder?

Nas enfermarias e centros de terapia intensiva de um hospital vive-se a radicalidade que uma internação pode representar para uma pessoa. A internação hospitalar e as circunstâncias que a envolvem conjugam de modo peculiar condições de desestabilizar trajetórias de vida. O que se dá é que quando alguém é atingido no corpo por uma emergência, algo inesperado como um acidente, a falência súbita de algum órgão, ou quando a partir do corpo debilitado fica-se perdido questionando o que foi  e o que é sua própria vida, isso provoca um verdadeiro “abalo sísmico” no “equilíbrio” psíquico, impactado que está pela emergência das fantasias mais temíveis, de questões subjetivas cruciais e, inicialmente, da impossibilidade de significar tais acontecimentos, marcando algo sem-sentido, indizível. Essas circunstâncias que impõem uma confrontação do indivíduo com  o limite, as quais a priori não se está preparado para enfrentar – a doença, a morte, o inesperado afinal -, diante do que fica-se preso em uma perplexidade que cala, deixa atônito como num tropeço, marcam para o psicólogo inserido no hospital um encontro com a clínica da urgência. Porque ali não é só de urgência física que se trata no sentido de emergencialmente ter que socorrer um corpo que padece, mas há também, e com uma radicalidade ímpar, a urgência psíquica. Urgência de um sujeito que, a partir de uma internação, vê vacilarem, ruírem as construções de sentido que faz para si (quem sou) e para sua história pessoal.

O setor de cirurgia cardíaca é campo privilegiado para levantar estas reflexões, já que é atravessado o tempo todo e de maneira incisiva pela urgência. Nesta unidade, onde o protagonista é o C.T.I, os pacientes encontram-se em estado grave, sedados, ligados a aparelhos, alimentados passivamente por sonda, dependentes. Ali a incidência da urgência é escancarada. Seja a urgência do pronto-atendimento a um coração que ameaça parar ou a uma família que vê um dos seus partir e precisa de uma “presença-testemunha”1 que sirva de continente para sua dor; seja de alguém que precisa de respostas urgentes: “vai dar tudo certo não vai?”, muitos nos perguntam. Enfim, a urgência da luta pela vida, das ações e decisões rápidas por parte da equipe médica, da necessidade de ressituar-se e como que ser “resgatado” diante do sem-sentido, do inaceitável que, exemplo, a indicação de uma cirurgia no coração pode situar. Quando é o coração que adoece – este órgão que carrega o peso de simbolizar a própria força da vida - e sobretudo quando se precisa tratá-lo cirurgicamente, pode-se imaginar com que força advém o confronto com a possível finitude mobilizando angústia, dor de medo desse coração doente parar de bater. Nas palavras de um paciente, o coração é o “relógio da vida, e se ele pára...”. E quantas vezes estes pacientes não se vêem ameaçados, com suas vidas na dependência de que os ponteiros deste relógio continuem a correr . 

Eis o cti de portas abertas. É esse o contexto onde realizamos um trabalho com sujeitos enfermos que se vêem confrontados com situações-limite que aí se mostram em diferentes roupagens: limite de alguém que está restrito ao leito, que não pode falar ao ser entubado, que vê perdida sua autonomia; enfim, limites impostos pelo adoecer que, de modo mais ameaçador, presentificam um legítimo drama onde a vida flerta com a morte a todo tempo. Lá, onde a química dos medicamentos vem sanar as dores do corpo, persiste um sofrimento não passível de ser reduzido aos cuidados da medicina. Qualquer coisa da ordem do inapreensível, irremediável, do que no entanto é preciso cuidar. Há nesta unidade de cirurgia cardíaca uma atmosfera sempre permeada por algo que escapa à possibilidade de compreensão. “Por que comigo?”, perguntam muitos no cti – esta sendo apenas uma das perguntas para as quais não se tem resposta. E é exatamente isso que lança o indivíduo numa urgência subjetiva.

As situações vivenciadas ali potencialmente trazem uma urgência visto que engrendam uma pressa. Há pressa no sentido do tempo, de ter que prontamente acolher com um lugar de escuta a queixa de alguém que sofre mas, para além disso – e é o ponto que queremos discutir neste trabalho – o paciente vive uma urgência psíquica porque quando seu coração se faz ouvir frente a um infarto, um diagnóstico que acene a iminência de sua própria morte, algo inesperado, ele se depara com uma destituição muitas vezes selvagem. Acha-se destituído subjetivamente na medida em que há neste momento crítico uma ruptura na qual suas referências simbólicas não o sustentam mais e ele se vê então mergulhado na angústia. “As situações de perda, seja de pessoas queridas (morte), da condição de “sadio” (doença), da condição de “inteiro”(cirurgia) se caracterizam na urgência por rupturas e descontinuidades”(Moura, 2000, p.8)  Quebra na cadeia das referências significantes onde o sujeito se ancora para se identificar e referenciar-se. Descontinuidade lá onde o sujeito, como efeito singular de significante pode dizer “Eu sou...”.  O paciente no cti fica desnudo: de suas roupas, seus objetos pessoais, de sua imagem corporal habitual, de sua rotina, pontos de construção desta imagem-de-si que até então o recobria.

É aí onde se instaura a crise, o traumático, onde vacila o lugar simbólico que referencia o sujeito. Neste momento as ilusões, garantias e verdades do sujeito são postas à prova por força de uma circunstância em sua vida que, vinda de fora, atinge e abala a sustentação  de onde o sujeito se reconhece e se define. Vacilante, ele se interroga ao invés de poder afirmar “Quem sou eu agora?”. É daí que vai poder fazer um chamado ao psicólogo. Mas, no aqui e agora da clínica da urgência, o que podemos do lugar que ocupamos?

Uma paciente de 56 anos internou-se, com um quadro de angina instável, após ter ouvido do médico sobre a gravidade de seu caso e a conseqüente indicação de uma cirurgia de revascularização. Nos atendimentos relata estar neste momento “apavorada”, porque embora tenha sofrido um princípio de infarto há seis anos atrás, disse ter podido continuar com sua vida normalmente. A necessidade do tratamento cirúrgico lhe colocava agora uma série de questões cruciais; ela sentia-se confrontada com o risco iminente que a cirurgia vinha com toda força representar para ela. Pensou em vários momentos desistir de operar-se. A realização do procedimento cirúrgico parecia-lhe incompatível com a possibilidade de levar sua vida da mesma maneira. Dizia que desde muito cedo assumiu todas as responsabilidades de casa. “Eu sempre resolvi tudo”, afirmava inúmeras vezes. Isto a fazia  questionar-se, perplexa: “Como vão ser as coisas com esta cirurgia? O que poderei fazer depois de operada se sou eu que cuido de tudo na minha casa pro meu marido e filhos? Vou ter que ficar quieta de repouso e quem vai fazer as coisas?”. O que essa paciente fazia era indagar-se todo o tempo procurando respostas lá onde as referências onde se alicerçam a construção de sentido que faz para si pareciam claudicar: ela era até então uma mulher “forte”, que tudo decidia e providenciava e, diante da condição de mulher doente, parecia-lhe inevitável formular a pergunta sobre o que seria ela agora.

Contudo, a possibilidade de falar e a partir desta situação-limite perguntar sobre si e sobre sua história, questionamento que muitas vezes traz como pano de fundo a pergunta por que comigo?, é o que pode favorecer a alguma mudança, alguma elaboração desta dor e sofrimento. E o sujeito só vai poder se perguntar a partir da oferta de um lugar, oferta feita pelo psicólogo e criada na própria relação com o paciente.

Lacan nos diz que com a oferta se cria a demanda. Deste lugar demarcado por uma escuta diferenciada que recolha os pontos de urgência visando dar-lhes uma direção, o sujeito vai poder endereçar sua interrogativa. Esse é o nosso desafio: criar este endereçamento, viabilizar que o paciente nos coloque no lugar do Outro que sabe sobre ele e que pode responder às interrogações acerca de seu sofrimento, mas, é claro, não sem o aval da transferência. Porque, quando isso acontece, podemos, ao invés de nos obstinarmos a responder às indagações, sustentá-las instigando o sujeito a um trabalho, a um querer saber das questões que o interpelam e que emergem diante do inexplicável.

Ou seja, diante da urgência o que podemos é acolher e fazer trabalhar esta urgência manejando a pressa exigida pela situação com o tempo necessário para que surja uma demanda a ser formulada em palavras. Se o paciente encaminha uma pergunta a seu próprio respeito esta é a via  possível de  uma retificação que o permita reposicionar-se diante de si e sua doença.

O que urge é que o indivíduo se restitua desta destituição (restituir-se na posição de sujeito), que possa ser ajudado a falar lá onde ficou sem palavras. E falando, possa, para além de esvaziar algo de sua dor, produzir uma construção significante que possa novamente conferir sentido à sua existência; uma construção que o determine enquanto sujeito.  A escuta viabiliza que o sofrimento seja simbolizado pela via da palavra, o que pode levar o indivíduo a se localizar frente a seu mal-estar, podendo tomar partido de seu próprio tratamento. Há então um tempo necessário para que a  urgência se extinga; um tempo onde o sujeito vai podendo retomar a  cadeia significante, tempo durante o qual vai sendo permitido a ele reconstruir as verdades e significações que o momento de crise veio abalar.

Na unidade de cirurgia cardíaca, num clima sempre permeado por algo que escapa à possibilidade de compreensão, lá onde a rotina traz situações que demarcam para o sujeito algo da ordem do indizível diante de um acidente que atravessa sua trajetória desestruturando-a, pode-se dar voz à angústia que emerge. Com isso, pode-se permitir fazer passar pelo discurso porque “enquanto o sujeito puder falar, escutá-lo é testemunhar que a vida persiste, pois ao falar, a história do sujeito se desenvolve para além do corpo biológico”( Valentim, p. 10).

Nosso trabalho é sustentar uma clínica que tenta ouvir o sujeito para além daquela cena ensurdecedora dos aparelhos que monitoram seus batimentos cardíacos. Ali onde se está assujeitado às situações inesperadas, aos tropeços da vida, permitir que o limite imposto por estas gere uma urgência de falar e uma emergência do desejo por que é lá onde se depara com o limite que se pode afirmar o desejo de viver. É nisso que apostamos.

 

Referências Bibliográficas

MOURA, M. Decat de. Psicanálise e Urgência Subjetiva In: Moura, M. D. (org) Psicanálise e Hospital. Rio de Janeiro: Revinter, 1996.

VALENTIM, J. O trabalho psicológico no hospital. Extraído da tese de doutorado Espaço Cirúrgico: Um lugar mal-assombrado. São Paulo, Puc-SP, 2002

 

 

Notas

* Trabalho desenvolvido no setor de Cirurgia Cardíaca, supervisionado pela preceptora Sheila Orgler e
** Psicóloga, Residente do 1º ano do Programa de Residência em Psicologia Clínico-Institucional do IP/HUPE/UERJ.
1 Em seu texto “Psicanálise e urgência subjetiva” Moura (2000) refere-se à inserção do psicólogo no contexto hospitalar  nos termos de uma “presença-testemunha”, onde a própria presença do terapeuta com sua oferta singular de escuta e sua disponibilidade pode testemunhar a dor e o sofrimento do paciente.