ARTIGOS

 

 

A riqueza e a magnitude da Pediatria e a participação da Psicologia nessa especialidade*

Renata Oliveira Magalhães**

 

 


Esse trabalho foi elaborado a partir da minha inserção no Ambulatório e na Enfermaria Geral de Pediatria que teve a duração de um semestre, sendo supervisionado pela preceptoria da Residência na Pediatria e pela Psicologia Médica no que se refere a minha atuação dentro da Enfermaria.

A retomada da Psicologia nesse setor foi possível somente após a apresentação e diálogo com os respectivos médicos responsáveis, enfermeiras e demais membros da equipe, onde pude verificar quais eram as suas expectativas e necessidades das atividades de um psicólogo.

O Ambulatório de Pediatria encontra-se no andar térreo do Hospital Universitário Pedro Ernesto e atende a bebês a partir de um mês de idade até crianças de 11 anos e 11 meses. As consultas médicas são realizadas por internos e residentes da Faculdade de Medicina com dois médicos responsáveis presentes.

O trabalho no Ambulatório foi iniciado após a compra de materiais didáticos adequados para a faixa etária atendida e arrumação da sala de Psicologia.

Foi acordado que quando o médico percebesse a necessidade de um atendimento psicológico para a criança, ele marcaria o seu retorno na agenda da Psicologia para a data mais próxima, já que havia um crescente aumento do número de crianças para serem atendidas e um limite de até 4 crianças por turno.

Desse modo, quando a criança e a sua família retornavam, era realizada uma consulta conjunta que poderia ser conduzida pelo médico ou pela psicóloga, dependendo de cada caso.

Após o atendimento conjunto, na grande maioria das vezes, era agendado um encontro com a criança e o seu responsável para fazer uma avaliação e poder distinguir a necessidade do início do atendimento psicológico.

Os atendimentos foram realizados na forma de psicoterapia breve, através de aproximadamente oito encontros que se focavam nas principais queixas relatadas na avaliação devido a imensa população que demandava de atendimento.

Sabendo da dificuldade dessas crianças serem realmente atendidas pela Psicologia em outras instituições públicas através de encaminhamentos, preferi atender no formato de psicoterapia breve, encaminhando-as a outros serviços somente no final do semestre, alguns casos que precisavam da continuidade da terapia. Dessa forma, aproximadamente 20 crianças foram atendidas pela Psicologia no Ambulatório nesse período.

Observou-se junto à equipe médica que atualmente as crianças não são tão acometidas pelas patologias conhecidas da infância como sarampo, cachumba e catapora, e sim por doenças culturais que antigamente se desenvolviam apenas em adultos como diabetes melittus, obesidade e hipertensão arterial.

As principais queixas apresentadas pelo médico ou pelo responsável da criança a consulta que justificavam a avaliação psicológica eram: mutismo sem causa biológica na escola, obesidade, dificuldade de aprendizagem, comportamento agressivo, lentidão no desenvolvimento físico ou mental, separação dos pais, enurese, neurose pós-traumática, depressão e etc.

Em grande parte das avaliações, constatou-se a necessidade de acolher a angústia da mãe para poder orientá-la em relação ao comportamento do seu filho(a). Apesar da impossibilidade de efetuar uma terapia familiar pela limitação do espaço físico, percebi a imensa necessidade de tratar a criança dentro da sua dinâmica familiar. Para isso utilizei a técnica do genograma para avaliar o funcionamento da família e identificar os seus componentes de até três gerações passadas, e algumas sessões foram realizadas em conjunto com as pessoas que conviviam com a criança.

Constatou-se que alguns comportamentos distoantes da criança como por exemplo, chorar em excesso ou de agressividade para com os demais, são atitudes que refletem a ausência de um outro canal de expressão da sua raiva, insatisfação, descontentamento ou tristeza.

Foi através da observação e da participação no jogo e na brincadeira da criança que pude ir vivenciando a sua singularidade, o seu modo peculiar de lidar com os materiais presentes na sala, se era tímida ou extrovertida, se falava espontaneamente ou precisava do olhar de aprovação da mãe. A criança, quando atendida sem os pais, às vezes parecia encontrar um novo espaço com brinquedos diferentes dos seus, com limites dialogados, fazendo com que ela buscasse conhecer melhor esse espaço e satisfazer a sua curiosidade com mais liberdade e espontaneidade.

Foi muito gratificante participar brevemente do momento de cada criança, como por exemplo, do atendimento a Vitória, uma menina de 10 anos que durante a consulta conjunta com o médico chorou constantemente. Acompanhada pela mãe Rosa, a queixa envolvia a sensação de formigamento nas pernas, choro excessivo e o temor pela morte dessa mãe. 

A mãe diz que Vitória sempre foi muito sentimental e ligada a ela, mas que nos últimos 15 dias chorava o tempo todo porque sentia medo, mas não sabia dizer do que. Vitória reside com os pais e com a irmã de 20 anos. Relatou um passeio a igreja onde a menina passou mal e ligou para que a mãe fosse buscá-la. Ao ser colocada no carro, Vitória estava dura, babando, tendo vômitos e diarréia. A hipótese médica era de uma convulsão epiléptica ou de uma conversão histérica e preferiu acompanhá-la mais de perto, marcando o seu retorno para daqui a 15 dias, dando início também a psicoterapia. 

No próximo encontro, Vitória diz que não gosta de ir à escola porque a professora é chata. Só gosta dos amigos e das brincadeiras. Ela está na 4º série do ensino fundamental, mas não tem ido à escola nem saído de casa porque estar sempre temerosa.

Vitória falta em um dos nossos encontros e a mãe diz que ela não quis sair de casa para vir à sessão porque uma voz masculina lhe dizia que algo de ruim iria lhe acontecer.

Rosa relata que teve depressão durante a gestação de Vitória e que toma medicação até hoje. Diz que ela, a mãe de Vitória, “apanhou desde a barriga”, ou seja, desde quando ainda era um feto na barriga da sua mãe e que isso a faz chorar a toa, só de lembrar chora. Sente que Vitória também é assim, muito sensível, mas não quer que ela passe por isso.

Ultimamente, Rosa estava tendo uma hemorragia constante sem conseguir atendimento médico. Vitória sabia do sangramento da mãe e talvez isso reforçasse o temor da sua morte.

Com o passar do tempo, Vitória foi melhorando e voltando as suas atividades. Após 8 encontros semanais, ela já havia retornado a escola, conseguia brincar com as suas amigas e até conversava com a professora. No fim do ano, conseguiu passar direto para a 5º série e escreveu uma carta para o Papai Noel. Surpresa, ganhou em janeiro uma boneca e uma carta resposta do Papai Noel, ficando muito emocionada ao recebê-la.

Como pode ser observado, ao longo do atendimento psicológico, Vitória pode ir voltando a sorrir, a desenhar, a inventar estórias, a se relacionar na escola e principalmente voltar a ser criança.

Na impossibilidade de alterar a realidade concreta na qual a criança vive que é muitas vezes imprópria, a psicoterapia infantil pode fazer com que a criança encontre outras formas mais saudáveis de lidar com as situações frustrantes. A equipe do Ambulatório de Pediatria é excelente no sentindo de estar sempre recorrendo a Psicologia, entendendo a necessidade dessas famílias, cooperando e sempre estando presente na discussão de cada caso clínico, buscando ampliar o seu olhar para não fragmentar a criança em diversas especialidades e poder assim, olhá-la como um ser inteiro ali presente, necessitando do auxílio de um profissional de saúde.

A Enfermaria de Pediatria caracteriza-se pelo atendimento a crianças graves, muitas vezes portadoras de doenças crônicas ou hematológicas. Por esse motivo, as internações acabam sendo prolongadas e as reinternações são constantes nessa enfermaria.

A partir dos rounds com o médico responsável pela criança, a Psicologia  informa-se a respeito da situação clínica, do prognóstico, da evolução do quadro, de possíveis restrições, recomendações e dificuldades que a equipe de saúde possa estar enfrentando. 

Nessa enfermaria encontramos 18 leitos com os mais variados diagnósticos, sendo 60% voltados para problemas clínicos como celulite, escabiose, diarréia, desnutrição, insuficiência renal crônica, Aids, tuberculose, varicela, etc. e 40% são ocupados com problemas hematológicos como anemia falciforme, leucemia e outras anemias raras.

A atuação da Psicologia na Enfermaria de Pediatria se focalizou no atendimento das crianças internadas e aos seus acompanhantes, realizando um grupo com as mães uma vez na semana, contando com a participação da enfermagem, cujo espaço era destinado para ocorrer trocas entre as mães e os profissionais de saúde, onde eram discutidas as dificuldades da internação, da patologia e da relação estabelecida entre as mães e seus filhos com a equipe de saúde.

As mães ou acompanhantes da criança encontram nesse grupo um espaço para colocarem suas queixas e reclamações sem se sentirem cobradas e exigidas, e sim acolhidas em sua angústia. Segundo Motta (2004, p. 19-28), “[...] as mães, assim como seus filhos, têm a necessidade de serem olhadas e cuidadas, até para que possam cuidar melhor de suas crianças.”

A estada da mãe junto ao seu filho durante a internação é um direito assegurado por lei. Todos sabem da importância da presença da mãe para a recuperação da criança.

A provisão ambiental fornecida pela mãe e que permite ao lactente a experiência de confiabilidade, pode ser designada pelo termo holding. Inicialmente, o holding implica o segurar físico do bebê, uma experiência cutânea na qual ele se sente sustentado e amparado fisicamente. Esse significado vai se ampliando à medida que o bebê cresce e que seu mundo vai se tornando mais complexo. Deixa de ser apenas o aspecto físico, passando a ser a forma total do relacionamento mãe-filho, em que este se sente protegido e amparado. (WINNICOTT, 1994, P.91)

Junqueira (2003, p. 45) ressalta que:

A maioria das mães não se ausenta do hospital, pois teme que algo aconteça com seus filhos durante esse período. Nesse sentido, a angústia, o medo da morte, a dor de ver seu filho doente, o afastamento dos seus outros filhos, a ausência do trabalho, entre outras preocupações, tornam-se entraves sempre presentes na internação.

A seguir será citado o relato de um pai de uma criança de 3 anos com o diagnóstico de osteomielite crônica para exemplificar esse medo da separação: “Nós entramos aqui juntos e sairemos daqui juntos. Eu vi o meu filho morrendo e virando os olhos. Ajoelhei e pedi a Deus para não levar o meu filho. Ele foi bom comigo. Quando ele sai do hospital, eu vou procurar uma igreja para agradecer. Agora olhando para o meu filho, eu nem acredito que ele está bem. Fiquei 30 dias no outro hospital em Japeri e agora revezo com a mãe dele porque preciso voltar a trabalhar.”

O material utilizado no atendimento psicoterápico era o que estava disponível no próprio quarto da criança como bichos de pelúcia, bonecas, carrinhos, livros, quebra-cabeça, a técnica do desenho e a própria fala da criança.

A leitura de livros de histórias infantis constitui-se em um momento de imaginação oferecido à criança hospitalizada, que permite que elas transcendam do contexto concreto e imediato da hospitalização, da doença e de pensamentos aversivos para um contexto de imaginação com conteúdos prazerosos (VITORINO, 2005, p.63).

Percebeu-se a necessidade da criança poder brincar no período de internação como forma de elaboração da sua própria doença, dos seus limites e possibilidades. Vitor de 9 anos comenta em nosso encontro que a Psicologia deveria se chamar Brinquedologia.

Sobre a hospitalização Ajuriaguerra (1973, p. 91) diz:

[..] que leva a criança a se confrontar com um estado de desamparo, ao perceber sua fragilidade corporal que resultou no adoecimento, originando reações diversas tais como regressões, estados depressivos, fobias e transtornos de comportamento em geral. Dessa forma, o brincar se insere nesse contexto como uma tentativa de transformar o ambiente das enfermarias, proporcionando condições psicológicas melhores para as crianças internadas.

É importante ressaltar que na Enfermaria contamos com uma sala de recreação para as crianças e com a presença dos Doutores da Alegria duas vezes na semana. O Projeto “Brincar é Viver” também contribui com voluntários que se disponibilizam para ler, brincar e estar com as crianças. O objetivo desse projeto é proporcionar as crianças internadas um espaço lúdico privilegiado, resgatando o valor cultural do brinquedo e do ato de brincar.

Durante o período em que estive atuando na Enfermaria pude observar uma equipe engajada e muito vinculada às crianças internadas, compartilhando com a Psicologia as suas angústias, principalmente quando ocorria a piora da situação clínica ou a fatalidade do óbito de uma criança.

Pela presença de doenças graves e necessidade da realização de procedimentos invasivos, a chefia de Enfermagem tem encontrado dificuldades para manter uma equipe de trabalho regular. Muitos profissionais desenvolvem patologias como a Síndrome do Pânico, Depressão, Burn-out e etc. e entram com o pedido de licença médica. Foi solicitado à Psicologia o início de um Grupo Psicoterapêutico com esses profissionais que lidam diariamente com essas crianças como forma de prevenir novos afastamentos para ser iniciado em um futuro próximo. 

Segundo Pires (1996) e Pitta (2003) isso pode ser explicado pelo fato:

[..] de que o cotidiano desses profissionais, que trabalham em hospitais, além de demandar a utilização de componentes cognitivos complexos, é caracterizado pelo contato intenso com doenças e com a morte, o que acarreta uma conseqüente sobrecarga de trabalho mental. Conviver diariamente com a dor, o sofrimento e a possibilidade de morte dos pacientes evoca nesses profissionais sensações e sentimentos que podem se configurar como dolorosos ou desagradáveis e que, muitas vezes, tendem a ser desconsiderados.

“A hospitalização na infância pode se configurar como uma experiência potencialmente traumática.” (Santa Roza, 1997). Ela afasta a criança de sua vida cotidiana, do ambiente familiar e promove um confronto com a dor, a limitação física e a passividade, aflorando sentimentos de culpa, punição e medo da morte. Para dar conta de elaborar essa experiência torna-se necessário que a criança possa dispor de instrumentos de seu domínio e conhecimento.

Quando a criança brinca, ela delimita o espaço e o tempo da brincadeira, num jogo de "faz de conta" ordenado (Huizinga, 1980). Nas palavras de Mitre (2004, p.125), "quando lidamos com uma clientela que tem sua rotina de vida desestruturada pela doença, o brincar aparece como uma possibilidade de organização desse caos".

Nesse sentido, ao invés de se lidar apenas com a incapacidade e com as limitações, podem ter a possibilidade de estabelecer um outro tipo de relação com as crianças, em que por meio do processo lúdico se privilegie o saudável e o prazeroso.

Para concluir pode-se afirmar que a promoção do brincar torna-se uma das estratégias possíveis para elaborar os aspectos da enfermidade e de sua conseqüente internação sendo fundamental para a criança e sua mãe, “[...] facilitando a continuidade da experiência de vida do sujeito” (MITRE&GOMES, 2004).

 

Referências Bibliográficas

AJURIAGUERRA, J. (1973). Manual de Psiquiatria Infantil. Barcelona: Toray-Masson.

HUIZINGA, J. (1980). Homo ludens. São Paulo: Perspectiva.

JUNQUEIRA, M. F. A mãe, seu filho hospitalizado e o brincar: um relato de experiência.Estud. psicol. (Natal), ene./abr. 2003, vol.8, no.1, p.193-197.

MITRE, R. M. & GOMES, R. A promoção do brincar no contexto da hospitalização infantil como ação de saúde. Ciênc. saúde coletiva.,  Rio de Janeiro,  v. 9,  n. 1,  2004. 

MOTTA, A. & ENUMO, S. Brincar no hospital: estratégia de enfrentamento da hospitalziação infantil.Psicol. estud., Jan./Apr. 2004, vol.9, no.1, p.19-28.

PIRES, D. Processo de trabalho em saúde no Brasil, no contexto das transformações atuais na esfera do trabalho: estudo em instituições escolhidas. Tese de doutorado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1996.

PITTA, A. Hospital: dor e morte como ofício. Hucitec, São Paulo, 2003.

SANTA ROZA, E. Um desafio às regras do jogo, pp. 161-188. In E Santa Roza & ES Reis. Da análise na infância ao infantil na análise.Contracapa, Rio de Janeiro, 1997.

VITORINO, S. C.; LINHARES, M. B. & MINARDI, M. R. Interações entre crianças hospitalizadas e uma psicóloga, durante atendimento psicopedagógico em enfermaria de pediatria. Estud. psicol. (Natal), May/Aug. 2005, vol.10, no.2, p.267-277.

WINNICOTT, D. W. Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes.Nota A mãe, seu filho hospitalizado e o brincar, 1994.

 

 

Notas

* Esse trabalho foi desenvolvido no Ambulatório e na Enfermaria Geral de Pediatria sob a orientação da preceptora Maria Luiza Bustamante e apresentado no XI Fórum de Residência em Psicologia Clínico-Institucional, em setembro de 2007.
** Psicóloga, Residente do 2º ano do Programa de Residência em Psicologia Clínico-Institucional do IP/HUPE/UERJ.