ARTIGOS

 

 

Reflexões sobre a questão do esquecimento na velhice*

Clarice Gomes Palmeira**

 

 


Antes de mais nada, gostaria de ressaltar que o interesse por este tema surgiu a partir das ricas trocas teórico-clínicas que venho tendo, nos últimos meses, com a psicanalista Glória Castilho, supervisora do NAI (Núcleo de Atenção ao Idoso) e preceptora da Residência. Foram estas trocas que me levaram a apostar em minha inserção no ambulatório de Memória do NAI, no qual são atendidos idosos portadores de transtornos cognitivos leves (TCL), os quais, acredita-se, poderão evoluir para um diagnóstico de demência, como a Doença de Alzheimer (a mais prevalente). De certo modo, só pude investir no trabalho neste ambulatório tão peculiar, uma vez que me apoiei na conhecida contribuição de Lacan, segundo a qual é com a oferta que se cria a demanda (Lacan, 1975).

Minha participação ainda é recente e, nesse sentido, apresentarei aqui alguns resultados iniciais, bem como possíveis desdobramentos para o futuro. O trabalho no NAI tem suscitado inúmeras reflexões, especialmente sobre o meu papel enquanto psicóloga, atuando junto à uma equipe interdisciplinar composta por médicos, enfermeiros, assistentes sociais e fisioterapeutas, dentre outros. É um desafio constante atuar em meio a um discurso tão diferente do discurso da Psicanálise, como é o discurso das Ciências Cognitivas, cuja linguagem tradicionalmente predomina no Ambulatório de Memória.

Nosso trabalho inclui uma interlocução necessária com o saber médico sobre o esquecimento. Neste ponto, compartilhamos da posição de Alberti (1999), que a respeito da relação entre Psicanálise e Medicina, pontua como cada um destes saberes é regido por leis próprias que, em determinadas circunstâncias, efetuam intersecções. A autora dá destaque ao aspecto do respeito mútuo, que deve estar em jogo nessa articulação (p.19-20). Desta maneira, não se trata, para nós, de tentar desconstruir ou propor uma substituição do discurso científico que predomina neste ambulatório mas, ao contrário, oferecer a possibilidade de se pensar a questão do esquecimento sob um outro viés. Isto porque a Psicanálise traz uma contribuição fundamental justamente no que tem de diferente, em relação ao discurso científico.

Pretendo realizar uma reflexão crítica sobre a questão do esquecimento na velhice, a partir de um recorte eminentemente clínico. Trago muitas perguntas e, mais do que encontrar respostas, busquei, neste estudo,  traçar alguns questionamentos. Em primeiro lugar: será que podemos afirmar que existe algo que escapa ao saber médico, a respeito do processo de esquecimento no idoso, ou será que se trata de algo exclusivamente referido a uma dimensão biológica? Existe algum outro lugar, do qual um idoso pode ser ouvido, no que diz respeito, talvez, a uma implicação subjetiva nestas situações em que a memória falha? Nesse sentido, qual poderia ser a contribuição da Psicanálise com relação a estes pacientes “esquecidos”, que a Medicina e a Cognição convencionou chamar “demenciados”? Que conseqüências a abertura a um trabalho pela fala, sob transferência, poderia trazer para o sujeito que se queixa de esquecimentos?

O esquecimento é uma das principais questões colocadas na clínica com idosos, sendo que os chamados “problemas de memória” configuram uma queixa muito comum. É difícil encontrar um idoso que não se queixe de esquecimentos, que podem ir desde à clássica situação da “panela esquecida no fogo”, até algumas situações mais extremas, como certos “apagamentos” e “lapsos”, como uma paciente que relatou ter tido um “branco” quando estava num ônibus, só despertando minutos depois, num outro bairro, distante daquele em que estava. Mesmo quando os esquecimentos ainda não ocorrem muito, ainda assim tornam-se tema de vários atendimentos, em que os idosos colocam o temor de “ficarem esquecidos”, ou mesmo “de pegar aquela doença, o Alzheimer”.

No entanto, apesar de tão presente no discurso dos idosos, a questão quase não tem sido alvo de estudos da Psicanálise. É verdade que mesmo a velhice ainda dispõe de bibliografia reduzida, ao contrário da infância e da adolescência, que certamente são mais exploradas. No meio psicanalítico, ainda existe alguma reserva quanto ao trabalho com idosos. Persistem certas interpretações dos psicanalistas a respeito da obra freudiana, balizadas por contra-indicações ao trabalho com idosos, feitas por Freud1. No entanto, na própria obra podemos encontrar elementos que nos levam a uma relativização destas contra-indicações2.

Sendo assim, o que um psicanalista poderia dizer a respeito do esquecimento em idosos? Em primeiro lugar, existe uma diferença fundamental entre a concepção de esquecimento para a Psicanálise e para a Cognição. Para a Psicanálise, o esquecimento aponta ao sujeito e não ao déficit, como entende a Cognição. Logo, o esquecimento, ao contrário de indicar patologia ou déficit do aparelho psíquico, só ocorre justamente por eficácia deste aparelho. Vamos ver como isso acontece, a seguir.

Tomaremos como duas referências fundamentais, para este estudo, o volume VI da obra freudiana, intitulado Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901), especialmente o primeiro capítulo, que fala do esquecimento de nomes próprios. Três anos antes, Freud já tinha publicado o artigo O Mecanismo Psíquico do Esquecimento (1898), cujo material é bastante similar ao texto de 1901, porém com algumas formulações um pouco diferentes, que também iremos utilizar aqui. Nos dois textos, Freud deixa claro que o processo de esquecimento não é arbitrário, uma vez que obedece a certas leis. Marca uma posição de diferença em relação às concepções que os psicólogos, em geral, acreditam serem necessárias para haver o esquecimento, como a influência da atenção. Em 1901, no capítulo VI (sobre lapsos da escrita), Freud sublinha que o que está buscando esclarecer é de outra ordem:

Os exemplos que submetemos à análise realmente não nos autorizam a supor que tenha havido uma redução quantitativa da atenção; encontramos algo que talvez não seja exatamente a mesma coisa: uma perturbação da atenção por um pensamento que se impõe e demanda consideração.
(Freud, 1901, p.139, grifo nosso)

Freud vai buscar no mecanismo do recalque, a explicação para o fenômeno do esquecimento, que para ele nunca é casual, sendo acima de tudo motivado. Esta motivação será buscada, no seu entender, na medida em que pudermos, nas suas palavras, “perscrutar a história de um evento psíquico desse tipo” (Freud, 1898, p.279). Queremos ressaltar este aspecto, sinalizado por Freud,  que envolve a história de cada esquecimento, inclusive nos idosos, como temos podido perceber em nossa prática clínica.

Não queremos contudo generalizar, afirmando que todo esquecimento é da mesma ordem. Há esquecimentos, como o que ocorre em demências já avançadas, que nos levam a interrogar em que medida o sujeito poderia estar implicado. Certamente, nestes casos ocorre algo muito distinto e mais radical do que um simples sentimento de irritação por não conseguir lembrar, como Freud aborda em dado momento (1898, p.275). Algumas vezes, inclusive, o sujeito nem mesmo se dá conta desse esquecimento, mas ainda assim persiste um sentimento de angústia e estranheza.

Voltando, porém, à questão da história de cada esquecimento, podemos nos perguntar o quanto estes idosos podem ter algo a ver com aquilo de que se queixam. Parece oportuno, neste momento, trazer o exemplo de uma paciente atendida por mim, que foi submetida, no ambulatório, a um teste de memória. Numa parte do teste, uma história é lida e logo em seguida, é solicitado ao idoso que diga o que consegue se lembrar; após cerca de dez minutos, nos quais outras atividades são feitas, é pedido novamente que ele diga o que guardou da mesma história. Esta, traz uma situação em que um banco é assaltado. Chamou a atenção da profissional que aplicou o teste, uma certa insistência da paciente em lembrar erroneamente o local onde o assalto teria acontecido: nas duas vezes em que foi solicitada, a paciente relatou que havia sido “num trem”. É interessante dizer que na sessão seguinte a este teste, a paciente, que já vinha sendo acompanhada há mais de um ano, trouxe aspectos de sua infância no interior do estado, que anteriormente nunca havia contado. Contou-me, justamente, que veio para a cidade grande numa viagem de trem, que para ela tinha sido muito marcante, na medida em que viajou desacompanhada, quando contava apenas nove anos (seus pais já estavam na cidade, internados num hospital e por isso não puderam acompanhá-la). Não nos parece que o esquecimento e o equívoco apresentados tenham sido casuais. O significante “trem”, que insiste no teste e posteriormente, na análise, sem dúvida sinalizam para algo do sujeito.

Freud fala, ao longo da Psicopatologia da Vida Cotidiana, de várias situações em que algo parece insistir. Esta insistência se liga exatamente ao aspecto inconsciente envolvido no processo do esquecimento e, neste contexto, ao mecanismo do recalque. Algo do recalque, contudo, tende a escapar, podendo vir à tona não só em situações de análise, mas até mesmo durante um teste cognitivo, como bem ilustra a situação que acabamos de citar.

Desta forma, o esquecimento pode ocorrer quando há um desprazer ligado a determinada representação, que precisa então ser recalcada. Esta representação pode vir à consciência de maneira deslocada, como demonstra (de maneira bastante complexa) o caso Signorelli3, descrito por Freud. O sujeito, assim, poderia apresentar uma resistência a lembrar-se de algo (1901, p.21). Sendo assim, algo do sujeito parece insistir, mesmo num esquecimento.

Sobre isso, temos outro exemplo bastante interessante. Uma paciente veio à primeira entrevista queixando-se de esquecimento. Em associação, começou a lembrar como foi o seu nascimento; falou da relação difícil com a mãe, desde a infância; trouxe a morte desta, dizendo  como foi para ela ter ficado órfã... A partir daí, trouxe uma história de vida muito sofrida; rejeitada pela família, foi até mesmo moradora de rua. Seguiu falando de sua vida até a idade de trinta anos, quando conseguiu se estabelecer na vida, começando a fazer laços importantes como o casamento, um emprego, a maternidade... Após algum tempo falando, subitamente interrompeu seu relato, dizendo: “é só isso queeu tenho para contar”. A analista, interessada nos “próximos capítulos” de sua história, interrogou se não haveria algo mais a dizer, inclusive sobre seu presente. Disse então a paciente: “não tem mais nada. Eu só lembro daquilo que eu queria esquecer. Só lembro das coisas ruins que me aconteceram. A parte onde tudo começa a melhorar, eu esqueço tudo. Só esqueço das coisas boas”.

Esta fala da paciente parece confirmar o comentário de Freud sobre seu próprio esquecimento, no caso Signorelli: “(...) esqueci uma coisa contra minha vontade, quando queria esquecer intencionalmente a outra” (p.21). Logo em seguida, acrescenta: “(...) minha intenção de esquecer algo não foi nem um êxito completo nem um fracasso total” (p.22), indicando o compromisso que havia entre duas representações distintas, envolvidas no exemplo trazido por Freud.

Poderia haver, então, algo que o eu prefere não conhecer? No caso de nossa paciente, a resistência se apresentou não só em relação à recordação de determinados fatos de sua vida, mas também ao tratamento. Ora, o tratamento psicanalítico implica precisamente numa rememoração, sob transferência. No entanto, uma vez que os fatos trazidos à análise repercutem no presente, este material (relativo a um registro passado) se torna atual. O trabalho analítico irá possibilitar um certo esvaziamento do sofrimento trazido por algumas lembranças. Até para que possa “esquecer”, de alguma maneira, o sujeito terá que se lembrar.

Retornando aos primórdios do tratamento psicanalítico, ao período em que Freud pouco a pouco foi construindo seu método, lembramos que: “a histeria das mulheres e a doença senil dos idosos eram as doenças mentais mais diagnosticadas ao final do século XIX. Elas tinham um sintoma em comum: a perda de memória (Guggenheim, 2001, p.9).

As histéricas ensinaram muito à Freud, na medida em que a partir do tratamento de uma série de casos de histeria, Freud pôde enxergar na sexualidade e no inconsciente possíveis explicações para os sintomas neuróticos (como a amnésia histérica). O sintoma histérico desaparecia quando, no decorrer do trabalho de análise, a paciente conseguia relembrar o fator traumático que estava na base de seus sintomas. Freud dá bastante ênfase ao aspecto da rememoração, explicando que seria necessário que o acontecimento traumático fosse relembrado a partir de um trabalho pela fala, com o maior número de detalhes possíveis (Freud, 1893, p.271).

Ao lado das histéricas, entretanto, haviam os idosos senis. O que eles poderiam nos ensinar? Parece útil retomar a Psicopatologia da Vida Cotidiana. Freud esclarece que os fenômenos que vinha estudando – esquecimentos de nomes, lapsos na escrita, na fala – acometeriam mesmo aqueles que se dizem saudáveis. Porém, para ele suas construções sobre os mecanismos envolvidos nestes fenômenos, poderiam servir também como modelo para os processos patológicos, relativos às psiconeuroses, como a histeria, as obsessões e a paranóia (1898, p.279).

A partir das contribuições freudianas, portanto, poderíamos talvez dizer que, se a memória sempre teve um lugar primordial na história da Psicanálise, da mesma maneira, ela parece ter uma função primordial na velhice. Através de suas reminiscências, existe também para o idoso um caminho aberto à elaboração, a cada vez que uma lembrança ou uma história vivida é repetida e recordada sob diferentes ângulos. Castilho (2007) nos fala de uma paciente, que dizia “... ando muito esquecida”, interrogando então o analista: “esquecida por quem?”. A autora esclarece como essa intervenção permitiu uma abertura ao sujeito, para que este pudesse formular uma pergunta em torno de sua localização, frente ao desejo do Outro.

Sem pretender solucionar este impasse, apresentaremos agora alguns fragmentos da análise, recentemente iniciada, de um idoso relativamente jovem, de menos de 60 anos, que recebeu o diagnóstico fechado de Alzheimer. Este paciente foi encaminhado para atendimento pela Psicologia, uma vez que se encontrava, segundo a equipe, bastante “deprimido”. É relativamente comum que surja um quadro depressivo, na mesma época em que o  idoso começa a apresentar a Doença de Alzheimer, o que certamente pode abrir a um questionamento do porquê isso ocorre. Por hora, nos concentraremos em pensar o caso clínico.

O paciente chegou com um ar absolutamente perplexo. Parecia perdido, como alguém que não sabe muito onde está ou o que se passa. Após certa hesitação para começar a falar, se disse “hipnotizado pela doença”, acrescentando então: “ela está me dominando”. Iniciou a primeira entrevista falando do impacto do adoecimento em seu trabalho. Pedira para ser transferido para um setor onde houvesse “menos pressão”. O paciente começou então a repetir a mesma história, várias vezes, de maneira quase mecânica e artificial: “trabalho lá há muitos anos, mas o setor onde eu trabalho estava ficando difícil para mim, era muita pressão. Por isso pedi pra sair. Nesse novo setor, fui recebido por uma senhora que conhece a doença, tem alguém assim na família. Foi bom ser recebido por ela, me senti compreendido”. Fazia uso do mecanismo da repetição; contudo, neste caso a repetição ocorria de uma maneira completamente extremada. Ele repetia, repetia, porém sequer minimamente podia recolher essa repetição, repetindo diversas vezes a mesma fala, sem se dar conta, numa mesma sessão.

Quando atendemos idosos, ou mesmo pacientes mais novos, a pergunta “não lembro se já contei isso aqui” é realmente muito freqüente. Mas obviamente, algo de outra ordem ocorria com este paciente. A analista, porém, podia recolher a repetição insistente de uma outra maneira, procurando ouvir que aspecto diferencial poderia ser recolhido, a cada vez que o mesmo conteúdo retornava. Assim, atenta à insistência do significante “pressão” em seu discurso, buscou interrogar a mesma: “mas que pressão?”. O paciente, ignorando a pergunta, seguiu com  a mesma ladainha anterior, sobre o trabalho, os dois setores, a senhora... Mais à frente, já na terceira ou quarta repetição da mesma história, a analista insistiu na pergunta: “pressão? Como assim?”. Algo então pareceu ocorrer, na direção de uma possível repetição diferencial: “ah, quando eu digo pressão, acho que é a minha pressão, sou eu que me pressiono. Eles estavam tentando me boicotar no outro setor, já não me deixavam mais trabalhar, mas a pressão para sair não foi deles. Eu é que pedi pra sair, porque já não estava mais agüentando ficar lá, sem poder digitar no computador, fazer minhas ligações, visitar os clientes”. Ao sair, a analista notou que ele havia esquecido o guarda-chuva no sofá; porém, nada disse, aguardando. Já quase fora do consultório, o paciente voltou para apanhar o que havia esquecido. Precisava, enfim, colocar-se a trabalhar, para buscar o que estava esquecido. Cabe a pergunta: o que, neste sujeito já tão marcado pelo esquecimento, pôde se engendrar, já numa primeira consulta?

Na entrevista seguinte, chegou perguntando “como é mesmo o seu nome?”. Retornou com a mesma história, porém com outro diferencial: ao falar da senhora no trabalho que “conhecia o que ele tinha”, dirigiu-se à analista: “você conhece essa doença que eu tenho?”. Devolveu então a analista: “conheço algo sobre o Alzheimer, mas só você pode me dizer como é”. O paciente deu então um sorriso, passando em seguida a falar das limitações que vinha enfrentando, por conta do Alzheimer. Dentre estas limitações, o angustiava bastante a dificuldade para ler: “quando pego um livro, empaco na primeira página. E há muitos livros que eu ainda não li...”. Ao final, começou a indagar como funcionaria o trabalho de análise e como este poderia ajudá-lo. A analista, diante desta importante pergunta do sujeito, sobre o que seria possível realizar ali, sinalizou a importância do trabalho pela fala, explicitando que “falar sem dúvida poderia ajudá-lo”. Como resposta, disse o paciente: “ah, mas eu não sou muito de falar”; no entanto, até o final da sessão falou sem efetuar muitas pausas, exclamando, quando a analista pontuou o término do tempo: “ah, mas já acabou? Agora que eu ia falar da minha filha!”. Na saída, repetiu a pergunta da entrada: “qual o seu nome mesmo?”.

Já na terceira entrevista, o paciente chegou um tanto diferente, com um ar ainda um tanto perdido, porém sem a mesma perplexidade de antes. Contou que havia se enganado no trajeto para o NAI, apesar de conhecê-lo muito bem; se perdeu, mas logo em seguida pôde corrigir o engano. Trouxe esse fato rindo, aparentemente sem lamentar a falha. Em seguida, relatou um fato vivido naquela semana: tentou telefonar para um amigo, mas subitamente “os números foram fugindo de sua mente”. Depois de muitas tentativas, finalmente conseguiu ligar. Nesse ponto, novamente questionou o trabalho de análise, que estava se iniciando: “mas, será que essa coisa de Psicologia vai ajudar, mesmo?”. A analista, mais uma vez, pôde indicar-lhe o trabalho pela fala, deixando clara sua potência. Dessa vez, ele pareceu aceitar melhor a proposta: “vamos falar, então!”, com um ar animado, sorridente. O que teria se encaminhado, já neste começo?

Este caso passou a ser atendido recentemente e por isto, apresentamos neste momento apenas algumas entrevistas iniciais. Contudo, começamos a perceber que algo de uma movimentação mínima começa a se delinear. O sujeito que chegou quase “apagado”, desabitado de seu desejo, começa agora a traçar planos para o futuro, que incluem a retomada de certas atividades de lazer, que abandonou na juventude: “acho que vai ser bom pra mim, nesse momento, voltar a fazer as coisas que me davam tanto prazer”. Vem dando ênfase não só ao que não pode mais fazer, devido à doença; tem começado a falar, também, daquilo que é possível ser feito.

Assim, além do atendimento médico, o paciente dispõe agora de um outro espaço. Temos apostado, juntos, naquilo que a Psicanálise, pela via da linguagem, pode produzir. Mais do que meramente “dar suporte psicológico ao paciente que tem Alzheimer e está deprimido”, nossa contribuição se dá numa outra direção.

A Psicanálise indica a insuficiência do discurso da Cognição, no que tange o fenômeno do esquecimento. Ao contrário de portar um saber previamente construído sobre o esquecimento, o analista aposta numa abertura para que o sujeito fale de sua implicação nesse esquecimento, sobre o que ele próprio tem a dizer sobre o mesmo. Estamos falando, neste estudo, de perda de memória; uma perda que, na velhice, pode vir acompanhada de muitas outras perdas importantes. Castilho (2005) assinala a perda de laços fundamentais na velhice: “a relação com o trabalho, ao aposentar-se; a relação com seus próximos, que morrem ou se afastam; a relação com seus ideais, que requerem algo de um remanejamento” (p.44).

Para a Psicanálise, contudo, o déficit ou a perda não são contingenciais; ao contrário, a perda aponta para algo de estrutura. A perda se coloca para todo ser falante, durante toda a vida, uma vez que estamos todos submetidos à mesma lei da Castração4. Desta forma, não é evidente que todo idoso seja esquecido, nem que a perda seja questão intrínseca apenas ao envelhecimento. Não há como ignorar a incidência desta questão, na clínica com idosos, porém há que se ter cuidado com qualquer generalização.

A partir da clínica, identificamos a necessidade de levar em consideração esta questão da perda, em especial a perda de laços, em sua relação com o esquecimento.  Uma paciente dizia, com impressionante sensibilidade, num contexto de grupo terapêutico: “eu acho que a gente vai ficando esquecida, porque quando fica velha vai ficando cada vez mais dentro de casa... A gente vai ficando mais isolada, vai deixando de procurar as pessoas... Deve ser por isso que a gente começa a esquecer de tudo”. Para esta paciente, o nexo entre memória e laços subjetivos parecia muito claro.

Acreditamos que há muito ainda a ser avançado, neste campo que buscamos explorar.  Sinalizamos que, futuramente, continuaremos a investigar outros aspectos, ligados ao esquecimento no idoso. Um deles se refere aos aspectos da cultura, como por exemplo, a crescente intolerância no que diz respeito a pequenos desvios e dificuldades, que converge numa tendência à patologização e medicalização da velhice (Groissman, 2002). Por ora, no entanto, optamos por nos centrar naquilo que Freud e a clínica psicanalítica nos trazem como inestimável contribuição.

 

Referências bibliográficas

ALBERTI, Sonia. Uma intersecção entre Psicanálise e Hospital. In: In: Revista Práxis e Formação – As várias modalidades de intervenção do psicólogo, IV Fórum da Residência em Psicologia Clínico-Institucional.  Rio de Janeiro: UERJ, Instituto de Psicologia, p. 13, 1999.

CASTILHO, Glória. Perda de laços, solidão e sentimento de estranheza: questões na clínica com idosos. In: Hanna, Maria Silvia Garcia Fernández & SOUZA, Neuza Santos (orgs.): O objeto da angústia. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, p.44-55.

_______________. Sobre o trabalho de luto na experiência com idosos. In: Transfinitos, nº 5, v.1. Colóquio: A escrita na Psicanálise. Publicação Aleph Escola de Psicanálise, ano 6. Editora Autêntica, 2007.

FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud [ESB]. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

_________. (1893-1895) Estudos sobre a histeria. Vol. II.

_________. (1898) A sexualidade na etiologia das neuroses. Vol. III.

_________. (1898) O mecanismo psíquico do esquecimento. Vol. III.

_________. (1901) Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Vol. VI.

_________. (1904 [1903]) O Método Psicanalítico de Freud. Vol. VII.

_________. (1905 [1904]) Sobre a Psicoterapia. Vol. VII.

_________. (1923) A organização genital infantil (uma interpolação na teoria da sexualidade). Vol. XIX.

_________.   (1937) Análise Terminável e Interminável. Vol. XXIII.

GROISSMAN. A velhice, entre o normal e o patológico. In: História, Ciências, Saúde-Manguinhos. Janeiro-abril 2002, vol.9, n.1., p.61-78.

GUGGENHEIM, Ester Susan. As horas cinzas: memória e reminiscência no tempo da velhice. Orientador: BIRMAN, Joel. Tese de Doutorado – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social (UERJ). Rio de Janeiro, 2001, 120p.

LACAN, Jacques. Conférences et entretiens dans les universités nord-américaines (1975). 5-61. Scilicet 6/7, Paris, Seuil, 1976.

 

 

Notas

* Trabalho desenvolvido no setor NAI-UNATI do Hospital Universitário Pedro Ernesto sob supervisão de Glória Castilho e apresentado no XI Fórum de Residência em Psicologia Clínico-Institucional, em setembro de 2007.
** Psicóloga, Residente do 2º ano do Programa de Residência em Psicologia Clínico-Institucional do IP/HUPE/UERJ.
1 Veja mais sobre estas contra-indicações em A sexualidade na etiologia das neuroses (1898), O Método Psicanalítico de Freud (1904 [1903]) e Sobre a Psicoterapia (1905 [1904]).
2 O próprio Freud iria relativizar suas concepções anteriores, alguns anos depois, em Análise Terminável e Interminável (1937).
3 Veja mais sobre o famoso caso Signorelli em Freud (1898, 1901).
4 Ver mais sobre a questão da Castração em A organização genital infantil – uma interpolação na teoria da sexualidade (Freud,1923).