ARTIGOS

 

 

A castração e a doença orgânica: um caso de cegueira progressiva*

Cristiane Bueno Iatauro**

 

 


A equipe ambulatorial de Psicanálise e Saúde mental do NESA é formada por uma psiquiatra, quatro psicólogas, além de estagiários e residentes, sendo a psicanálise o principal eixo teórico que norteia a prática clínica. Os casos atendidos são muito variados e são encaminhados prioritariamente por profissionais de diferentes especialidades do próprio NESA, tais como nutricionistas, fisioterapeutas, assistentes sociais, ginecologistas, cardiologistas, reumatologistas, entre outros.1

Jaqueline, adolescente de 13 anos, chega ao ambulatório do NESA encaminhada pelo serviço de hipertensão de adolescentes do HGB2 o qual ressalta a importância de um acompanhamento multiprofissional para seu caso. Jaqueline é obesa, hipertensa e vem apresentando desde a sua menarca (que ocorreu aos 11 anos de idade) episódios de hipermenorréia e dismenorréia importantes. Além desses distúrbios que a marcam, possui, desde o seu nascimento, uma “atrofia do nervo óptico” que vem se agravando progressivamente. Atualmente, a adolescente utiliza apenas 20% de sua visão, segundo relato de sua mãe. 

Alberti, et al. (1994) ressalta que, à luz da psicanálise, o adolescente é antes de qualquer coisa um sujeito, e que, para além das questões que dizem respeito normalmente ao sujeito (que não são poucas), sofre com questões específicas desta etapa que atravessa, tais como mudanças que estão ocorrendo a nível do seu corpo, de suas relações afetivas e escolares (Alberti, et al., 1994).3

A adolescência, destaca a autora, implica um “longo trabalho de elaboração da falta no Outro”, trabalho que exige poder lidar com as perdas, encarar o desamparo, as impossibilidades e submeter-se à castração simbólica (Alberti, 2004:16). 

Jaqueline, já de saída, traz impressa no real de seu corpo uma perda efetiva que não cessa de se anunciar: a perda da visão.

Sabemos que a psicanálise, se posicionando contrariamente a uma dimensão de déficit, muitas vezes usada por outros discursos para se falar das perdas vividas pelos idosos ou crianças, aponta a perda como estrutural e intrínseca à constituição subjetiva. Assim, todos os sujeitos, inevitavelmente, terão que se haver com a falta que lhes é inerente. Porém, parece que Jaqueline, dada a cegueira que se anuncia, se depara de forma mais evidente e angustiante com esta verdade da condição humana. Este foi o ponto que motivou a elaboração deste trabalho.

Desta forma, destacaremos algumas reflexões que se impuseram a partir dos atendimentos realizados à adolescente em questão.

O serviço de nutrição do NESA encaminha Jaqueline para a equipe de Saúde mental escrevendo o seguinte pedido de parecer: “adolescente e sua mãe manifestaram o desejo de serem atendidas pelo setor de psicologia”. Indagada sobre isto, a adolescente responde que foi uma sugestão da sua mãe e da nutricionista que ela fosse atendida pela psicologia devido ao seu “nervosismo e ao seu medo de bicho” (sic). A mesma relata então que “tem muito medo de bicho”, “tem fobia de bicho” (sic). Tem medo, principalmente, de baratas e de “bichinhos pretinhos pequenininhos” que não raras vezes vê sobrevoando seu quarto, fato que a faz acordar o irmão de 11 anos que dorme no mesmo cômodo ou chamar sua mãe. Porém, diz ser comum a mãe chegar a seu quarto e os bichinhos já terem se escondido, o que a leva a ter fama de “maluca” (sic), como a chama a mãe nessas ocasiões.

Outra questão trazida pela adolescente em suas primeiras entrevistas diz respeito a sua dificuldade de seguir as prescrições da nutricionista. Diz que “acha chato” (sic) fazer dieta e acaba perdendo a paciência e comendo o que não deve. Além disso, conta que a mãe está sempre fazendo uma porção de coisas gostosas para comer. Relata ainda que o fato de não conseguir seguir a dieta é algo que a deixa nervosa e a faz roer as unhas.  Às vezes, “rói tanto as unhas que chega a sair sangue” (sic).

Jaqueline cursa a oitava série em um colégio público onde diz ter umas poucas amigas que vêm puxar assunto com ela, pois fica deveras quieta e não conversa com ninguém na sala de aula. Diz que alguns colegas implicam com ela devido aos óculos especiais que necessita usar para enxergar o quadro negro, óculos que lhe renderam o apelido de “quatro olhos”. Tem dificuldade para arranjar parceiros para os trabalhos em grupo ou para os exercícios da aula de educação física. “Acha esta situação chata, mas não pode fazer nada” (sic). Revela ainda que tem “medo de falar com as pessoas” (sic) e que não consegue apresentar os trabalhos na frente da sala de aula e acaba perdendo pontos por causa disso.

O caso de Jaqueline nos leva a tentar pensar os entrelaçamentos entre a castração e a doença orgânica. Partimos da idéia de que a cegueira da adolescente, mesmo não produzida psiquicamente, se articula - na linguagem - com a castração. Perguntamos-nos o quanto tais “bichinhos pretinhos pequeninos” vistos freqüentemente pela paciente não são ocasionados por efeito da sua perda de visão que vem se agravando a cada dia. Será que ela não está dando uma significação imaginária a algo produzido organicamente? 

No artigo intitulado “A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão” (1910), Freud alerta os psicanalistas para o fato de que os fenômenos psíquicos se baseiam nos orgânicos e questiona se a supressão das pulsões sexuais componentes, que é determinada por influências do ambiente, bastaria para provocar perturbações funcionais nos órgãos, ou se deveriam estar presentes condições constitucionais especiais, para que os órgãos fossem levados à exacerbação de seu papel erógeno. Conclui Freud, “teríamos de observar estas condições como a parte constitucional da disposição para adoecer de perturbações psicogênicas e neuróticas. Este é o fator ao qual, quando aplicado à histeria, dei o nome provisório de complacência somática4 (Freud, 1910: 227).

Em “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914), ao avaliar a influência da doença orgânica sobre a distribuição da libido, Freud destaca que a mesma é tida como uma ameaça à integridade do ser humano, um ataque narcísico que aponta para a sua fragilidade e a possibilidade de sua destruição. Desta forma, uma pessoa doente “deixa de se interessar pelas coisas do mundo externo, na medida em que não dizem respeito a seu sofrimento” (Freud, 1914:89) retirando, assim, os investimentos libidinais dos objetos e os colocando de volta para o seu próprio eu; regredindo. Certas atitudes defensivas, sentimentos depressivos ou um verdadeiro estado de luto diante da perda da saúde e da ilusão da onipotência são recursos encontrados pelos sujeitos na tentativa de darem conta da falta que lhes é inerente e estrutural.

Quinet (1999) faz referência ao artigo freudiano escrito em 1926 para falar sobre uma vertente da dor que seria vinculada à castração, a qual o sujeito seria remetido a cada perda ocorrida ao longo de sua existência:

Parece perfeitamente normal que aos quatro anos de idade uma menina chore penosamente se sua boneca se quebrar, ou aos 16 se ela for desprezada pelo namorado, ou aos 25, talvez, se um filho dela morrer. Cada um destes determinantes da dor tem sua própria época e desaparece quando essa época termina. Somente os determinantes finais e definitivos permanecem por toda a vida. Devemos julgar estranho se essa mesma menina, depois de ter crescido, fosse chorar por algum objeto sem valor que tivesse sido danificado. Contudo é exatamente assim que se comporta o neurótico. (Quinet,1999, apud Freud, 1926:171).

Acompanhando Freud, Quinet (1999) conclui que a “perda daquilo que escamoteava a castração” é o que desencadeia no sujeito a dor, o luto, a depressão ou a melancolia. Porém, se o sujeito, no decorrer de sua história, for necessariamente confrontado com inúmeras perdas, qual a arma que tem para lidar com esta falta? A arma é o desejo, que seria a manifestação da falta em outra vertente, nos responde este autor.

A função do analista e seu imperativo ético é fazer um sujeito falar, na medida em que não há significante no campo da linguagem que responda pelo sujeito, sendo este o efeito da fala. Nossa aposta é que Jaqueline, podendo formular uma demanda de tratamento e engajar-se na mesma, possa situar-se frente às questões que lhe acometem. Voltemos ao caso.

Sobre o relacionamento com Maria, sua mãe, a adolescente se queixa dizendo que a última “é muito estressada e vive reclamando” (sic). Reclama dos seus próprios males de saúde, de ter que cuidar da casa e dos filhos sozinha e de eles não lhe ajudarem com os serviços domésticos. Às vezes ameaça os filhos de abandoná-los. A adolescente refere-se à mãe como uma “exploradora de menores” (sic), pois fica pedindo para que a ajudem a cozinhar e lavar a louça. Além disso, fala que Maria “não a deixa fazer nada sozinha ou ir para a casa das amigas, pois fica com medo de que ela se perca” (sic).  Conta que as amigas queriam levá-la para uma casa de show, mas sua mãe não deixou.

No seu prontuário é enfatizado que Jaqueline teria relatado à médica que realizou a sua anamnese que sua mãe seria superprotetora e não a deixaria sair de casa nem escolher as próprias roupas.

Jaqueline conta que a escola proporcionou aos alunos de sua classe uma visita a um museu, mas ela não foi porque ficou com medo. Diz que “tem medo de se perder” (sic).  Lembra que quando sai com a mãe fica segurando a mão desta com medo de se perder.

Maria, mãe de Jaqueline, é “encostada pelo INSS” (sic) por ser diabética e ter tido, recentemente, tuberculose. Relata que a filha não pode andar sozinha, por isso a acompanha nas idas e vindas na escola e nas consultas médicas. Diz que a adolescente não consegue ler o número do ônibus, necessita da ajuda das colegas de escola ou da prima para fazer isso. Conta um episódio em que a filha saiu sozinha para ir a uma pracinha perto de casa e ao atravessar a rua quase foi atropelada.

Segundo a adolescente, seu pai é “calminho” (sic), diferente de sua mãe. Diz que, às vezes, ele também briga com ela, mas dá só um “sermãozinho” e logo voltam a se falar. Porém, conta que este, algumas vezes, a trata como criança, como “bebezinha” (sic). Cita em tom enfático a boneca que o mesmo lhe deu no último dia das crianças, a qual colocou o nome de Patrícia. Pensa um pouco e diz que ela mesma é que havia pedido ao pai para que lhe desse uma boneca. Jaqueline conclui que, às vezes, gostaria de voltar a ser criança, pois “é mais fácil, tem menos responsabilidade” (sic).

Alberti (2004) retoma a indicação freudiana de que o “desligamento da autoridade dos pais é o trabalho mais importante da adolescência” (1905) enfatizando que este é um processo que acontece gradativamente, envolvendo idas e vindas. O fundamental é que os pais suportem as críticas que os adolescentes comumente lhe dirigem e possam sustentar frente aos filhos suas opiniões, diretivas e indicações (Alberti, 2004:22). Desta forma, entrar na adolescência é uma escolha do sujeito que implica em poder pagar o preço do desligamento dos pais (ibid: 46). 

Jaqueline já pensou em estudar em uma escola especial para deficientes visuais, mas seus pais não a incentivaram alegando que para isso teria que morar em um alojamento, já que a instituição é distante de sua casa. Seu pai “morreria de saudade” (sic) e para ela também seria difícil ficar longe do mesmo, diz Jaqueline. Para o próximo ano, tendo terminado o primeiro grau, a adolescente está pensado em estudar na mesma escola da prima que ela adora, mas seus pais novamente estão contra esta idéia, pois teria que dormir na casa da prima já que as aulas são à noite. A mãe alega que ela deve ir para uma “escola técnica” (sic) que fica perto de sua casa.

Jaqueline parece estar disposta a enfrentar o desligamento da autoridade dos pais, mas será que os mesmos se dão conta disto? Será que os pais da paciente conseguem perceber a angústia na qual a adolescente esbarra sendo permanentemente confrontada com esta castração no real que é a perda progressiva de sua visão?

Parece que, ao contrário da filha que, perdendo a visão, quer ver e saber de sua verdade, sua mãe nada quer saber disso. Maria tem se queixado freqüentemente de que a filha tem estado “impossível” (sic), que a tem culpado por ter nascido com deficiência visual e que, às vezes, não quer fazer nada só quer ficar deitada vendo televisão. Jaqueline, após ter ido a sua consulta com o oftalmologista do Instituto Benjamin Constant e ter ficado sabendo que sua vista tinha piorado um pouco mais, passou a “responder” (sic) a ela e ao marido quando lhe pediam alguma coisa. Maria diz ter ficado estressada com a filha, perdido a paciência e brigado com ela.

Jaqueline, por outro lado, tem podido falar sobre suas questões. Após consulta com o oftalmologista refere-se ao médico como um “velho chato que fala sempre a mesma coisa e nunca o que ela quer escutar” (sic). Ele nunca lhe dá “uma notícia boa, só coisa ruim” (sic). A paciente fala com tom irônico, com um certo humor. Toda vez que vai lá, o médico lhe passa novos óculos e, desta última vez, disse que sua visão tinha piorado. Diz que odeia usar óculos, apesar de “até estar na moda hoje em dia” (sic). Já o irmão, “queria usar óculos, mas nem precisa” (sic). Fala que não há nada a fazer em relação ao seu problema de vista e que o médico lhe disse que a mesma vai “continuar caindo, vai continuar piorando” (sic).

No colégio, mudou de turma para ficar na mesma sala que as amigas, as quais guardam seu lugar na frente da sala quando ela se atrasa. Diz que, ao contrário das últimas, que têm facilidade para se enturmar, é mais “quieta” e “concentrada” (sic), mas tem perdido um pouco o medo das pessoas e tem conseguido fazer novas amizades. Tem medo “de que não gostem dela, de que a achem chata” (sic), mas isso não está acontecendo. Alguns alunos da turma anterior até vieram lhe perguntar o motivo da sua mudança de classe.

Intitula-se como “conselheira sentimental”, já que as colegas recorrem a ela para resolver questões afetivas. Com os meninos, quase não fala, pois acha que eles “são mais implicantes” (sic). Por ser mais quieta, diferente de sua prima, por exemplo, “que é escandalosa e fica gritando no recreio” (sic), acha que os meninos podem não gostar do jeito dela.

Diante da proibição dos pais ao seu pedido para que fosse a uma casa de show com as amigas, diz ter ficado revoltada e ter lhes perguntado: “é assim que vocês querem que eu aprenda a me virar sozinha?” (sic).

Castilho (1994) nos aponta que Lacan, em “A ética da psicanálise” lança mão dos descaminhos do personagem de Sófocles, Édipo, nas peças Édipo-Rei e Édipo em Colono, procurando estabelecer elos entre o percurso do herói trágico e o percurso de uma análise. Diferentemente de Freud, que confere ao cegamento que Édipo se impõe o valor de uma auto-punição, Lacan chama a atenção para outro ponto, indicando que, movido pelo desejo de saber “a chave do enigma do desejo”, Édipo consegue ultrapassar o campo do desconhecimento e ir em direção à sua própria verdade:

Se ele se arranca do mundo pelo ato que consiste em cegar-se, é que somente aquele que escapa das aparências pode chegar à verdade. Os antigos sabiam disso – o grande Homero é cego, Tirésias também (Castilho, 1994, apud Lacan, Seminário 7:371).

Nossa aposta é a de que Jaqueline possa enfrentar a sua castração e, a partir disso, enxergar mais.

 

Referências Bibliográficas

Alberti, S. “A demanda do sujeito no hospital” In: A clínica do sujeito no hospital, Cadernos de Psicologia, Instituto de Psicologia, UERJ, n. 1, 1994.

___________ . O adolescente e o Outro. Rio de Janeiro: Jorge zahar Ed, 2004.

Castilho, G.  Dissertação de Mestrado: Impasses clínicos: um estudo sobre o supereu. Rio de Janeiro, PUC, 1994.

Freud, S. – 1910. “A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão” In: Edições Estandard Brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Vol. XI, Rio de Janeiro: Imago, 1996.

__________ 1914. “Sobre o narcisismo: uma introdução” In: Edições Estandard Brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Vol. XIV, Rio de Janeiro: Imago, 1996.

_________ 1926. “Inibição, Sintoma e angústia” In: Edições Estandard Brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Vol. XX, Rio de Janeiro: Imago, 1996.

Quinet, A. “Atualidade da Depressão e a dor de existir” In: Extravios do desejo: depressão e melancolia. Editora Rios Sinuosos/Contra capa, 1999.

 

 

Notas

* Setor: NESA – Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente do Hospital Universitário Pedro Ernesto. Supervisora: Sonia Alberti. Trabalho apresentado no XI Fórum de Residência em Psicologia Clínico-Institucional, em setembro de 2007.
** Psicóloga, Residente do 1º ano do Programa de Residência em Psicologia Clínico-Institucional do IP/HUPE/UERJ.
1 O ambulatório do NESA conta com uma equipe multiprofissional que inclui 21 especialidades.
2 Hospital Geral de Bonsucesso.
3 Texto apresentado na Unidade Clínica de Adolescente do Hospital Universitário Pedro Ernesto (UCA/HUPE/UERJ) na disciplina Psicologia Institucional do curso de Especialização em Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia – UERJ.
4 Em “Fragmento da análise de um caso de histeria” (1905) Freud afirma que um sintoma histérico não pode ocorrer sem a presença de uma certa “complacência somática” fornecida por algum processo normal ou patológico no interior de um órgão do corpo ou com ele relacionado (pg.47).  Em “Contribuições a um debate sobre a masturbação” (1912) o autor volta a fazer referência a este termo.