ARTIGOS

 

 

Urgências e Transferências*

Bruna Paranhos Americano**

 

 


Este trabalho tem como objetivo refletir sobre a atuação da psicanálise numa enfermaria de clinica médica e cirúrgica e principalmente, se propõe a apresentar a questão da transferência nesse contexto, a partir de um caso clinico.

Figueiredo (2001), em “Vastas Confusões e Atendimentos Imperfeitos”, define condições mínimas para que a clínica psicanalítica possa ser reconhecida nos diferentes locais onde circule. A primeira condição seria que o campo sobre o qual o psicanalista trabalha é o da realidade psíquica e que esta se manifestará através da transferência, que seria a segunda condição. A transferência funciona ao mesmo tempo como mola propulsora e como resistência, cabendo ao analista manejá-la. A última condição seria o trabalho analítico onde o sujeito é convocado a trabalhar, através da associação livre, numa tentativa de suportar o que lhe é insuportável. 

A equipe de Saúde Mental do NESA leva em conta essas três condições e busca a partir delas constituir um trabalho orientado pela psicanálise, que introduza no discurso médico a subjetividade do adolescente hospitalizado. 

Como sabemos não há psicanálise sem transferência. A transferência é ponto crucial para que haja análise, ou para que algo do discurso analítico possa se colocar dentro de uma instituição.

Freud (1905) em “Fragmento da análise de um caso de histeria”, define as transferências como reimpressões, cópias das moções e das fantasias que devem ser despertadas e tornadas conscientes à medida dos progressos da análise.

No texto “A dinâmica da Transferência”, Freud (1912) mostra que a relação do sujeito com as figuras parentais é revivida na transferência, principalmente com a ambivalência pulsional que a caracteriza. O que é essencialmente transferido não é aquilo que efetivamente aconteceu, mas a realidade psíquica, ou seja, desejos inconscientes e fantasias.

Na situação analítica, a transferência se dá no momento em que conteúdos recalcados ameaçam se revelar. Desta forma, ela surge ao mesmo tempo como poderoso instrumento terapêutico e como resistência, impedindo o sujeito de avançar em seu trabalho.

Teoricamente, trata-se de um deslocamento do afeto de uma representação para outra. Não sendo literalmente uma repetição, mas investimentos em equivalentes simbólicos do que já foi vivido.

Num hospital universitário são muitos os profissionais das mais diversas áreas que atuam junto ao paciente - médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas, pedagogos, entre outros. Tendo em vista o que Freud (1912), nos dizia a respeito da transferência - que ela está presente em todas as relações das nossas vidas - esses profissionais estão também sujeitos a ela, porém não possuem conhecimento para manejá-la, tal como a psicanálise se propõe a fazer.

Numa enfermaria, bem diferente de um consultório ou até mesmo de um ambulatório, são muitas as intercorrências durante um atendimento. Procedimentos terapêuticos podem interromper a escuta, outros profissionais podem se colocar na posição de ouvinte, o sofrimento físico pode impedir a fala, a localização do leito pode impedir uma maior privacidade. O ambiente hospitalar apresenta-se com barulhos e estímulos outros, um setting completamente diferente do que Freud propunha. Além disso, a equipe de Saúde Mental é convocada a responder também na urgência. Com freqüência um integrante da equipe é chamado a realizar pronto-atendimentos a pacientes que nem sempre estão sendo acompanhados pelo mesmo. O que é pertinente devido às urgências que acontecem numa enfermaria de clínica médica e cirúrgica.  Situações nas quais a presença da equipe de Saúde Mental é de grande importância.

Como podemos, então, sustentar uma transferência que - tal como Freud nos ensina - possa funcionar como mola propulsora do tratamento, num local onde tantos profissionais atuam e onde a urgência da vida faz-se presente a todo o momento?

Um caso clínico servirá de exemplo.

Robson, paciente de 17 anos, com Leucemia Linfoblástica Aguda, LLA, foi internado na Enfermaria do NESA após o diagnóstico dado em outro serviço. Ao chegar ao NESA foi prontamente atendido pela equipe de Saúde Mental. Robson mostrava-se sempre muito confiante no tratamento.

O paciente, além da LLA, apresentava um sobrepeso. Era bastante obeso e dizia ter uma alimentação precária. Nas primeiras semanas de internação, descobriu-se que ele tinha também diabete e pressão alta. Apesar da descoberta de mais essas doenças, nada abatia Robson. Ele gostava de ouvir rock e o fazia com um fone de ouvido.

Nos atendimentos psicológicos, ele falava que estava sempre bem. Contava um pouco de sua vida, ele gostava de festas de rock, usava roupas pretas e tinha muitos amigos. Robson referia-se também à sua família e ao fato de que ficava muito tempo sozinho em casa, pois sua mãe, seu pai e irmão trabalhavam muito. Tinha o costume de ouvir música trancada no quarto o dia inteiro e de comer de uma só vez, três a quatro pacotes de biscoitos. Além de beber bastante nas festas em que ia, chegando a passar mal no dia seguinte frequentemente.

Nos primeiros meses de internação, estava sempre sorrindo, era muito comunicativo e adorado por todos na enfermaria. “Um exemplo para os pacientes”, ouvia-se dizer dele.

Devido à participação em um congresso científico, permaneci ausente por uma semana, um mês e meio depois da primeira internação dele. Nessa semana, Robson saiu do Hospital e foi para a Casa Ronald Mc Donald1. Lá teve o primeiro episodio da doença que o mobilizou, um desmaio. Foi levado às pressas ao HUPE e foi internado pelo Plantão Geral.

Logo que eu retornei do congresso, Robson disse que na minha ausência tinha passado muito mal e achou que ia morrer. Pôde pela primeira vez expressar seu medo da morte, o que até então não havia feito. Disse que foi um susto muito grande, e que sentiu a minha falta, pois a única pessoa que podia ouvi-lo era sua mãe e ele não queria falar sobre isso com ela, já que sabia que ela havia ficado assustada também. Disse que já tinha passado, que tinha chorado e agora não queria falar mais. Pude então perceber que a transferência havia se estabelecido. 

Os meses se seguiram e Robson continuou com freqüentes internações, e em todas elas era acompanhado pela equipe de Saúde Mental. Falava bastante nos atendimento. Dizia que não tinha contado para seus amigos que estava doente, falava sobre seu cabelo que estava caindo, ele tinha um cabelo grande e desde o inicio isso era um problema para ele. Contava das festas em que costumava ir, o que agora não podia mais. No entanto, não chegava a levantar alguma questão nem a respeito de algo de sua vida, nem de sua doença. Tudo estava aparentemente sempre bem para ele, apenas a queda do cabelo o incomodava.

Em janeiro, avisei a Robson de minha ausência em função das férias que se aproximava. Seria minha segunda ausência no atendimento dele. Durante minhas férias, ficou sob a responsabilidade de outra integrante da equipe de Saúde Mental. No mês de janeiro, infelizmente, houve um agravamento da diabete de Robson, o que exigiu aplicações de insulina que ele próprio teve que aprender a fazer. Robson se mostrou resistente a isso, e a equipe solicitou à minha colega que o acompanhasse mais amiúde. Ou seja, foram realizados pronto-atendimentos.

Robson permaneceu internado durante todo o mês de janeiro, o que não era usual, normalmente suas internações eram por períodos menores.

No dia seguinte de meu retorno das férias fui visitar Robson na enfermaria, já tendo sido informada do agravamento de seu estado. Estranhei a dificuldade dele falar comigo, desviava o olhar quando eu passava, e quando ia atendê-lo dava algumas desculpas para não ser atendido. No entanto, perguntava por mim aos outros integrantes da equipe de saúde, queixando-se que eu não estava indo vê-lo. Chegou a falar, no dia seguinte em que voltei, que eu tinha voltado de  férias e não tinha ido atendê-lo.

Essa situação se estendeu durante algum tempo. Comecei então a ser questionada na enfermaria a respeito do atendimento a Robson. Era freqüente a pergunta “quem está atendendo Robson?”, por parte de membros da equipe, denunciando algo que eu ainda não conseguia identificar, mas que era paradoxal para mim, pois me considerava a psicóloga dele desde quando ele foi internado pela primeira vez há cinco meses. A receptividade de Robson diminuira e sempre estava ocupado na hora que eu lhe propunha atendimento. Quando era atendido por mim, falava pouco e não se referia ao tempo que estive fora.

É interessante notar que, por um lado Robson falava pouco comigo mas, por outro, fazia circular na enfermaria uma queixa de que não estava sendo atendido.

Freud (1914) em Recordar, Repetir e Elaborar admite a transferência como uma arena onde se apresenta tudo que diz respeito às dificuldades que o sujeito tem para investir os objetos com libido. A partir da repetição somos levados até o despertar das lembranças, que aparecem após a resistência ter sido superada. Neste mesmo texto, Freud ressalta que a maneira de transformar a repetição do paciente num motivo para recordar o que está sendo repetido, reside no manejo da transferência.

Nesse caso, podemos dizer que havia um endereçamento nessas falas de Robson, como se através dos "ouvidos da instituição”, chegaria a mim sua queixa de abandono. Entendi que Robson estava bastante ressentido pela minha ausência em situações de urgência para ele. Ele havia se sentido abandonado, tal como se sentia quando seus pais saiam de casa e o deixavam sozinho. Respondia a eles se trancando em seu quarto e bebendo demais, da mesma forma, respondia a mim com o seu silêncio e se queixando, com outros técnicos, de não estar sendo atendido, por mim.

A partir daí, os atendimentos passaram a acontecer em uma sala de procedimentos, que usamos quando o atendimento no leito por alguma razão é impossibilitado. Nesse caso, era uma aposta que eu fazia de que ele pudesse falar. Uma forma de indicar a ele que havia algo a ser dito. Como efeito dessa intervenção, num segundo momento, Robson começa a falar algo desse tempo em que estive ausente, sem mencionar suas queixas e sem falar que queria ser atendido por outra pessoa, mas dizendo o quanto tinha sido complicado injetar a insulina em si mesmo. Apontei a minha ausência nesse momento tão difícil para ele e que era a segunda vez que ele precisava de mim e eu não estava. Disse-lhe que por conta disso ele não estava mais querendo falar comigo, que se sentira abandonado. No entanto, agora eu estava de volta e poderíamos falar sobre isso.  Robson abaixou a cabeça e não falou nada. Nos atendimentos posteriores, as questões começaram a surgir. Robson dizia que acreditava que a sua doença era conseqüência de suas atitudes na vida. Contava que ia para cemitérios, que passava a noite lá, que nunca havia acreditado em nada, que bebia até cair e que magoava as meninas que namorava. Ele começou a falar sobre sua sexualidade, sobre as ex-namoradas e sobre as novas “ficantes”.

Ao longo dos atendimentos nessa nova etapa do tratamento, dizia que se sentia culpado por tudo isso, pois não havia acreditado em Deus, então teria sido castigado. Esta fala era de sua tia, que a repetia com freqüência. Após algumas sessões onde pôde falar de sua culpa, Robson foi se dando conta de que haveria maneiras dele lidar com sua doença sem que para isso precisasse se sentir culpado por ter ficado doente. Sem usar a culpa como uma forma de dar algum sentido a tamanha invasão que a doença provocava.

Alguns pacientes com leucemia haviam falecido e ele dizia o quanto havia sentido na época, mas que só era possível falar disso agora.

Falava que apesar da doença, agora ele se sentia melhor, pois tinha visto que não precisava ser tão radical quanto era. Ouvia rock e ouvia funk também. Sentia-se melhor não estando preso a roupas pretas e um único assunto que os amigos roqueiros falavam.  Tinha feito amigos na Enfermaria que eram funkeiros e percebeu que era possível conviver com pessoas diferentes dele. 

Ao falar de sua doença, de seu tratamento, começou a elaborar o luto de tantas perdas ocorridas nessa fase de sua vida. Pôde falar mais a respeito do abandono que sentia antes de ter ficado doente. Ficava sozinho em casa sempre e o fato de comer demais, de ir para cemitérios, beber muito, de ser o mais popular nas festas, era usado como forma de se defender de sua tristeza e solidão. Ele dizia que agora queria ser tratado como O Robson e não como um paciente de leucemia, nem como um roqueiro popular. "O Robson antes vivia triste, agora não, agora estou feliz". 

Podemos dizer que, levá-lo para um outro ambiente onde ele pudesse falar sem interrupções e interpretar sua atitude como resposta a um sentimento de abandono que se repetia em sua vida, colocou um ponto nisso que ele me endereçava e possibilitou a abertura ao trabalho. Num atendimento posterior, Robson se refere a mim como a sua psicóloga, mostrando que de fato não se tratava de ser atendido por outra psicóloga. Tratava-se de um pedido de ajuda em ato, para que ele pudesse falar do que tanto o incomodava.

Este caso retrata como foi possível, para além dos atravessamentos que ocorrem numa enfermaria, sustentar uma escuta que mova um sujeito a trabalhar. O desejo do analista pode opera de um outro lugar, que não o dos outros profissionais que o atendiam. Lugar este onde se fez valer a transferência, de forma a manejá-la e criar condições para que o sujeito pudesse elaborar algo do sofrimento pelo qual estava passando.

 

Referências Bibliográficas

FREUD, Sigmund, 1905[1901]. Fragmento de análisis de un caso de histeria, Obras Completas,  Tomo VII, Ed Amorrortu, Buenos Aires.

 _______________. 1912.  La dinámica de la transferencia.  Obras Completas, Tomo. XII. Ed Amorrortu; Buenos Aires.

_______________. 1914.  Recordar, repetir y reelaborar. Obras Completas, Tomo XII, Ed Amorrortu, Buenos Aires.

FIGUEIREDO, A.C., 1997. Vastas confusões e atendimentos imperfeitos - A clínica psicanalítica no ambulatório público. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.

 

 

Notas

* Trabalho desenvolvido no Núcleo de Estudos de Saúde do Adolescente (NESA), sob a supervisão da Profª Drª Sonia Alberti e apresentado no XI Fórum de Residência em Psicologia Clínico-Institucional, em setembro de 2007.
** Psicóloga, Residente do 2º ano do Programa de Residência em Psicologia Clínico-Institucional do IP/HUPE/UERJ. 
1 Casa de Apoio a Crianças com Câncer. Onde crianças e adolescentes que não moram perto do hospital residem durante o tratamento, para garantir que a qualquer emergência estarão em pouco tempo no hospital.