ARTIGOS

 

 

Psicose e Estilhaçamento do Eu: Um acompanhamento em crise*

Americano, Bruna P.**;  Dias, Viviane P.***

 

 


Introdução

A partir da experiência como residente e estagiária de psicologia na enfermaria psiquiátrica, traçamos um breve percurso do acompanhamento terapêutico de um paciente esquizofrênico. Trata-se de uma reinternação, onde Gabriel(G), sexo masculino, 25 anos, depois de alguns anos freqüentando o Hospital Dia (HD), sofre nova ruptura. Sua história de sofrimento psicótico remonta aos 16 anos, quando vai ao encontro de sua mãe e seu marido, tendo o primeiro surto

A historia de Gabriel é repleta de conflitos familiares, repetições, abandonos e muitas particularidades que não serão especificadas neste trabalho. Faremos um breve resumo dos fatos relevantes para a compreensão deste caso, uma vez que as relações familiares são de fundamental importância para a estruturação psíquica do paciente. Isto aparece em seu discurso fragmentado, como um sujeito deslocado e sem lugar nestas relações de parentesco, não contando com uma referência identificatória.

 

Paternidade Desconhecida: Uma Vida Partida

Gabriel é filho de pai desconhecido e de Cristina, que o teve aos 17 anos. Cristina por sua vez é filha de Luiza, que também a teve aos 17 anos, sendo também filha de pai desconhecido.  Por Cristina ser muito nova e irresponsável (sic), quem assumiu os cuidados do menino foi Luiza, sua avó materna, Marcela, sua tia e Augusto companheiro de Luiza (pai de Marcela e padrasto de Cristina).

Quando Gabriel tinha 12 anos, sua mãe se mudou para a Itália, constituindo posteriormente nova família naquele país. Aos 16 anos, talvez por atritos com a avó e o avô adotivo, Gabriel foi morar com a mãe na Itália, onde rompe o surto psicótico frente aos esforços de adaptação e atritos com o padrasto, que exigia que ele trabalhasse. Com a crise, foi mandado de volta ao Brasil. Mas aqui, passa a apresentar comportamentos estranhos e é mandado de volta à Itália por sua avó, por conta de comportamentos estranhos que Gabriel estaria apresentando. Posteriormente, retorna ao Brasil em condições mais graves, numa aparente disputa de quem deveria ocupar-se dele diante do diagnóstico de Esquizofrenia.

Gabriel ficou internado em instituições tanto no Brasil como na Itália e sua primeira internação no HUPE aconteceu em 2001, tendo dois meses de duração. Após alta passou a ser acompanhado no Hospital-Dia. Em 2004 sua avó faleceu. Gabriel permaneceu sem crise até fevereiro de 2006, ocasião da presente internação.

Desde a morte da avó, Renato morava com o companheiro desta, a quem chama de avô. A partir das reuniões e dos atendimentos pudemos entender um pouco a dinâmica da família, o que também é retratado nas falas do paciente de forma dissociada.

Durante as reuniões, embora solicitássemos a presença daqueles que mais conviviam com Gabriel, que eram seu tio, sua tia e seu avô, quem participava no lugar do tio era sua esposa. Sua outra tia (a irmã de sua mãe) monopolizava os encontros. Era praticamente a única a falar sobre a história e o convívio com Gabriel, não dando oportunidades nem brechas para o avô falar, justificando que este era velho e não poderia contar com ele. Ao mesmo tempo temia sobre o futuro de Gabriel na perda do avô. Desta forma, a equipe teve que intervir diversas vezes e buscar ouvi-lo em particular. Tornou-se evidente o que Gabriel buscava indicar em seu discurso: seu lugar na dinâmica onde predominava a supremacia das mulheres e o forte sentimento de abandono, de rejeição e de falta de suportes.

 

A Internação: Compondo Mosaicos

Neste momento, a oferta da internação e do acolhimento (cf. FERREIRA, 2005) propõe ajudá-lo a reconstituir sua história de divisões nesta família desarticulada e a buscar novas tentativas de se relacionar com os outros, uma vez que as anteriores haviam sido frustradas. Procuramos trabalhar com o que ele mostrava em sua fala fragmentada e em seus delírios.

Segundo Freud (1924), o tipo e o alvo da defesa determinam o destino neurótico ou psicótico do sujeito, e, no caso da psicose, a defesa do sujeito se levanta contra um fragmento da realidade, a serviço do Isso. Assim, duas etapas podem ser percebidas: a primeira arrastaria o eu para longe da realidade, enquanto a segunda tentaria reparar o dano, recriando e remodelando uma nova realidade, como uma tentativa de restabelecer as relações do sujeito com esta realidade, mas não sem conseqüências.  Desta forma, nos deparamos com o delírio psicótico que, segundo Quinet (1990), seria como uma peça que se cola onde houve uma falha na relação do sujeito com o mundo da realidade. 

Ao chegar na enfermaria, Gabriel apresentava comportamentos bizarros, como por exemplo: dava saltos, colocava plantas e terra na boca, cuspia constantemente nos outros, lambia escarro de outro paciente, cheirava a mão após colocá-la nos órgãos sexuais. Tudo isto, provocava o afastamento das pessoas (pacientes e profissionais) em relação a ele. Chocava a todos com sua fala repugnante e atitude hipersexualizada.

Em seu discurso, emergiam palavras truncadas, descarriladas e também neologismos. Cantava algumas músicas funk com letras que falavam sobre armas, bandidos e drogas, onde sua maior intenção era provocar o ouvinte. Devido a esses comportamentos repulsivos e ataques verbais agressivos, via-se que sua relação com o outro estava comprometida.

Souza (1999) nos ensina que devido a um imaginário destroçado, o sujeito psicótico desprotegido se encontra aberto à intrusão do Outro, passivamente à sua mercê. Percebíamos essa intrusão em seu discurso e atos. Em um atendimento ele nos conta sobre uma suposta relação amorosa com uma mulher - Ana é minha mãe, não, minha vó, vozes, vozes que invadem. Nesta fala podemos contemplar a invasão, tanto das vozes enquanto alucinação auditiva, quanto a que se refere às mulheres de sua vida, o que se repetia na enfermaria. Tanto a equipe de forma geral quanto sua mini equipe de referência era composta em sua maioria por mulheres, com exceção do médico, em quem Gabriel parecia muitas vezes buscar refúgio, tentando identificar-se com a posição masculina. É interessante notar que essa tentativa de identificação se refletia em seu discurso, pois, quando era tentado um vínculo maior de confiança por parte da equipe de psicologia, este procurava reforçar sua posição masculina, dizendo: Que história é essa de se abrir? Tu fica me fazendo pergunta. É você que tem que se abrir. Tu é mulher. Eu sou machos. Na raiva expressada contra as mulheres, tentava se proteger contra a invasão do feminino e da passividade.

Despossuído de uma referência diferenciadora na partilha dos sexos, dizia não saber se era homossexual ou não e repetia, Os afeminados não herdarão os reinos dos céus; para vocês eu não sou gays, mas para mim, eu sou gays. Significantes que aparecem no plural, indicando a multiplicidade, o estilhaçamento do eu. Contra isso tenta afirmar sua posição masculina, ativa, buscando de diversas formas uma referência. Chegou a pedir para uma estagiária de psicologia assumir essa posição ativa, traduzida na seguinte fala: Às vezes quero ser machos que nem vocês. Fala para mim: eu sou machos. No discurso de Gabriel há um pedido de potência à mulher, potência essa que ele não sente que possui, e que podemos observar na sua estrutura familiar, onde as mulheres exerciam grande poder de decisão sobre os homens.

Como nos diz Souza (1999), o psicótico, desvalido do significante fálico, se aproxima da condição da mulher, pois ambos são carentes do significante suporte de suas identidades. É aí que,

“qualquer coisa da ordem de uma afinidade, de uma atração, empurra o psicótico a fazer dos emblemas e insígnias da mulher pontos de apoio, marcas e margens de referência que, malgrado sua natureza precária, inconsciente, ordenam minimamente o fluxo turbulento do seu existir” (Souza, 1999). 

Seus comportamentos repulsivos eram entendidos pela equipe, bastante mobilizada, como uma defesa contra a invasão do Outro. Com isto, procurava testar até onde o suportaríamos, uma vez que sua família não o suportou. Este forte sentimento o angustiava e buscava resolvê-lo afastando os outros de perto dele. Durante uma atividade, onde a sua psicóloga de referência conversava com outro paciente, cuja idade e nome eram iguais ao dele, Gabriel disse a ela: Pod e acompanhar ele, dá o espaço para ele, eu estou sofrendo muito, não precisa me acompanhar mais. Tendo em vista reforçar seu laço terapêutico, foi informado, neste momento, que teria seu “espaço” garantido e que enquanto ele estivesse internado a psicóloga continuaria o seu acompanhamento.

Segundo Souza (1999), o delírio é via régia por onde a fala se recupera e retoma a sua função de ordenar o campo da linguagem. Mas, a significação delirante seria ainda um recurso de sentido solitário e não compartilhável, no entanto, capaz de recriar um mundo menos hostil onde o psicótico pode novamente viver. Desta forma, durante o tratamento de Gabriel, buscamos ouvi-lo através de uma escuta diferenciada que lhe permitisse buscar uma reestruturação do eu, onde a construção delirante demonstrasse este esforço.

Após um mês de internação Gabriel pôde falar mais claramente de seu sofrimento e reconstruir sua história que só sabíamos até então por sua família. Nos disse: Eu fiz uma viagem. Tinha 16 anos. Aí eu viajei mesmo na cabeça, e quando eu quis voltar, já era tarde. Na verdade, continuo viajando até hoje. Não sei o que teria acontecido se eu não tivesse ido pra Itália, acho que foi o macarrão de lá, o macarrão da Cristina é sujo. Além disso, começou a questionar seu futuro, buscando a assistente social para se informar sobre seus benefícios e questionando como seria sua volta para casa, já que acreditava que o avô não teria condições para recebê-lo. Num grupo de fim de tarde1 ele afirmou: Agora estou mais eu, antes eu era mais do mundo”, também falou “Eu estou sofrendo, não fico falando isso porque não é coisa de macho”.

 

Considerações Finais

Durante os três meses de internação, Gabriel teve melhoras e recaídas e, ao final desse período, a partir de uma maior organização psíquica e o cessar dos comportamentos bizarros mais repulsivos, foi possível fazer sua passagem para o Hospital Dia. Foram realizadas reuniões com os familiares que se mostravam mais preparados para recebê-lo novamente. Além de discussões entre os componentes da mini equipe que o atendia, onde se discutiu sua presença diária no Hospital Dia e sobre as atividades que iria participar.

Destacamos sua fala antes da saída: A gora eu sou mais eu, antes era do mundo. Entendemos com isso que Gabriel estava num momento de reestruturação do eu, que antes se encontrava dissociado. Podendo reconstruir aos poucos laços com sua história de vida e ter acesso a algo de seu desejo. Está adquirindo alguma proteção contra a invasão e o submetimento ao Outro. Por mais que Gabriel continue viajando até hoje, como ele mesmo nos disse, possui agora um espaço para construir laços sociais e ter referências a que recorrer, o Hospital-Dia, onde freqüenta e participa de diversas atividades, em contato com outros pacientes.

 

Referências Bibliográficas

DÖR, Joel. Clinica Psicanalítica. Porto Alegre, Artmed, 1996.

FERREIRA, A. Pacelli. A construção do caso clínico na internação psiquiátrica: uma direção para o plano terapêutico. Revista latino-americana de Psicopatologia Fundamental, v. XIII, n. 2, pp 204-257. São Paulo, Escuta, 2005.

FREUD, Sigmund. Neurose e Psicose, Volume XIX, 1924. ESB, OC., Rio de Janeiro: Imago, 1996.

______________.  Perda da Realidade na Neurose e Psicose, Volume XIX, 1924. ESB,  OC. Rio de Janeiro, Imago, 1996.

QUINET, Antonio.  Clinica da Psicose. Salvador, Fator, 1990.

SOUZA, Neusa S.  A Psicose: Um Estudo Lacaniano. Livraria e Editora Revinter, 1999.

 

 

Notas

* Trabalho elaborado a partir da experiência no Projeto Espaço de Atividade e Convivência Nise da Silveira, junto à Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria - Hospital Universitário Pedro Ernesto/UERJ, supervisionado pelo Prof. Ademir Pacelli Ferreira e apresentado no XI Fórum de Residência em Psicologia Clínico-Institucional, em setembro de 2007.
** Psicóloga, Residente do 2º ano do Programa de Residência em Psicologia Clínico-Institucional do IP/HUPE/UERJ.
*** Estagiária de Psicologia.
1 Atividade realizada diariamente com os pacientes internados na enfermaria.