ARTIGOS

 

 

Desconstruindo Estigmas: o espaço da internação na Reforma Psiquiátrica*

Nataly Netchaeva Mariz**

 

 


Introdução

Esse trabalho busca discorrer sobre a questão do estigma que cerca a doença mental, pensado em articulação com o momento da internação do paciente em crise numa enfermaria psiquiátrica.

Pretende-se, pois, refletir sobre como se dá a internação dos pacientes psiquiátricos em enfermarias voltadas para a assistência à saúde mental no contexto de desinstitucionalização proposta pela Reforma Psiquiátrica. Parece que, de alguma forma, nos encontramos numa situação de impasse, visto que se por um lado ainda há a necessidade de internação em alguns casos de crise, por outro, podemos nos perguntar como oferecer algo diferente, além da simples identificação da patologia dentro de uma instituição voltada para a prática médica.

Desse modo, com a finalidade de enriquecer a discussão, serão apresentados fragmentos de casos atendidos por mim no período em que atuei na enfermaria psiquiátrica da Unidade Docente de Assistência (U. D. A) de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE).

 

A construção do estigma na prática psiquiátrica

Sabemos que, durante muito tempo, o paciente psiquiátrico foi visto como um indivíduo cuja subjetividade era desconsiderada, tendo sido relegado ao lugar de alienado no decorrer do processo de psiquiatrização da loucura. Como demonstraram os estudos de Foucault, o nascimento da psiquiatria se deu paralelamente ao nascimento dos asilos, considerados então locais de tratamento e cura, para onde a loucura pôde ser banida e, marginalizada, estudada nos mínimos detalhes. Em tais espaços, casos mais graves podiam passar pelo “tratamento moral”, que pretendia retificar os comportamentos inadequados por meio da persuasão, já que a alienação mental nada mais era do que uma doença de causa física e moral e por isso “potencialmente” curável (Serpa Júnior, 1998:99-100).

A partir de Pinel – que promove algumas modificações nas formas de tratamento da alienação mental – a psiquiatria se organiza no acompanhamento sistemático dos doentes mentais em instituições organizadas e com regras bem definidas e fechadas que possibilitaram o aprofundamento do estudo do transtorno psíquico. Assim é que se cria uma cultura de exclusão segundo a qual o sujeito considerado fora de seu “perfeito juízo” deve ser apartado do convívio social, para que possa ser examinado e curado de seus males.

Ferreira (2005:206) ressalta que o processo de institucionalização da loucura teve como marca a segregação do doente mental, cuja internação prescindia de uma razão determinada: a simples constatação de uma “desrazão” já era motivo suficientemente forte para a hospitalização desse sujeito. Tal fato nos faz questionar quais seriam os critérios utilizados para definir quem estaria fora de seu juízo perfeito e quem não estava.

Cavalcanti (2001:73) vem em nosso auxílio ao apontar para o fato de que, se num primeiro momento nos deparamos com um mundo que parece ter perdido seus valores éticos, na verdade, o que se nota é o fato dessa realidade considerar a Razão como um valor maior e a Ciência como sua “correlata”. Nesse sentido, a autora provoca o leitor ao questionar: “por que perder tempo com pessoas que falham exatamente naquilo que os sérios homens modernos mais prezam, a tão perfeita razão? Seria a Razão a chave de todo e qualquer conhecimento?”

Na contra-corrente da ideologia segregacionista, emerge o movimento da anti-psiquiatria e da atual Reforma Psiquiátrica, sustentados numa outra forma de ver e de lidar com a doença mental, procurando levar em conta a subjetividade subjacente nos pacientes antes encarados apenas enquanto patologias e diagnósticos, o que acabava por produzir uma cronicidade e asilamento quase inescapáveis.

O movimento da Reforma Psiquiátrica proveniente da Europa, principalmente da Itália e Inglaterra, chega ao Brasil na virada da década de 1970/80, num contexto de redemocratização do país e de formulação de novas políticas de saúde pública. Esse movimento propõe a desinstitucionalização do doente mental, criando novos dispositivos de atenção. Assim, a partir desse histórico, podemos nos questionar a respeito do lugar que pode ocupar a internação no contexto desse processo ainda inacabado da reforma.

 

A internação como via de acolhimento

Dell’aqua e Mezzina observam que:

A internação responde à doença, enquanto a tomada de responsabilidade pelo cuidado em saúde mental responde às diferentes formas e momentos da existência do usuário [...] A “tomada de responsabilidade” configura uma nova modalidade de relação institucional, que se baseia propriamente na assunção da responsabilidade (Silva, 2005:311).

É a partir dessa citação, que retrata uma outra maneira de ver a Instituição, que podemos agora pensar a Instituição enquanto espaço que possa oferecer ao paciente em crise algo além da contenção e da segregação que encontrávamos nos primórdios da prática psiquiátrica.

Nesse aspecto, Zanoni (2000) nos aponta para duas funções presentes na Instituição: a função de acolhimento do sujeito psicótico e a função terapêutica, ressaltando que é a partir do primeiro movimento, o da acolhida, que se torna possível a construção de uma demanda de atendimento terapêutico. Esse estudioso procura, assim, desconstruir a polaridade entre práticas distintas: a da instituição e a do analista. A primeira atua com vistas à redução dos sintomas, para pensar a saúde do indivíduo levando em conta uma estrutura coletiva de resposta, enquanto a segunda funcionaria no sentido de oferecer sua “escuta radical” visando a raiz da demanda que comporta a angústia e o mal-estar.

Vale ressaltar que, para o autor citado, a Instituição, antes mesmo de oferecer um tratamento ao sujeito, responde a uma necessidade de assistência. Ele fala de um abrigamento como forma de proteção para certos casos de psicose, ou ainda de passagem ao ato, neuroses graves, entre outros, quando não se trata da procura de um atendimento terapêutico por parte do indivíduo (incluindo aí a psicanálise), mas sim da necessidade que ele sente de ser protegido. A Instituição é um espaço em que se pode oferecer uma clínica coletiva, feita por diferentes técnicos, reunidos através da transferência de trabalho. Neste contexto, destacamos que a clínica em alguns casos pode exigir uma atuação que envolva apenas uma resposta no âmbito institucional, na medida em que há respostas que não podem ser dadas por um só indivíduo, pois se constroem por meio de práticas coletivas. Dessa maneira, “A instituição constitui a resposta praticável em alguns estados da clínica, a única resposta praticável na ausência da qual as pessoas que sofrem, ou as pessoas que lhe são próximas ficam expostas a um insuportável, que pode ter conseqüências dramáticas” (Zanoni, 2000:16).

Caberia, contudo, destacar que não se trata, neste trabalho, de defender a institucionalização dos pacientes, pois entendemos que não é porque a instituição cura, que ela deva ser mantida. Por outro lado, também devemos ter em mente que não é porque ela não cura, que deva ser suprimida. É importante pensar tal espaço tendo em vista sua função social, entendendo-se que há um limite tanto para a função social quanto para a terapêutica, para que não voltemos mais uma vez ao lugar alienante representado pela instituição, vista como detentora de um saber sobre o doente, e proporcionadora de uma terapêutica que visaria um ideal de normalidade.  

Nesse sentido, retomamos Cavalcanti (2001:74-75), com sua contribuição acerca da posição ética a ser assumida por profissionais que trabalham com saúde mental, uma posição que implica ir além do campo profissional. Essa visão inclui uma atitude a ser tomada perante a vida e o ser humano. Tal postura supõe um comprometimento com sua prática, devendo levar em conta os pacientes psicóticos não como meros objetos de ciência, mas como sujeitos que merecem ser respeitados tal como são. Zanoni (2000:28), por sua vez, afirma que “é preciso distinguir a dimensão do sujeito e a dimensão do cidadão, do indivíduo, que tem direito a assistência e ajuda.”

Com base na reflexão feita até aqui, apresentaremos alguns fragmentos de um caso, a fim de enriquecermos a discussão desta prática de muitos.

 

Caso clínico

Frânio tinha cerca de 30 anos. Acreditava ser capaz de comunicar-se telepaticamente e ter sempre suas idéias roubadas pelos outros. Diagnosticado como esquizofrênico paranóide, era visto no serviço como manipulador e incomodava pela atitude de sedução exagerada em relação às mulheres a sua volta. Com um longo percurso nos serviços de saúde mental, havia anos que não se internava, sendo acompanhado com certa regularidade pelo Hospital-Dia vinculado ao setor de Psiquiatria do HUPE. Num dado momento de desorganização, Frânio solicita internação e, sozinho, procura a emergência. Tal fato causou certo mal-estar, pois sua solicitação foi entendida como uma forma de “fuga” dos problemas que o cercavam no mundo lá fora e havia o receio de manipulação do paciente da situação de crise.

Logo no início, o paciente estabeleceu um bom vínculo com a equipe de referência. Quando seu médico teve que se afastar por questões de saúde, ele sentiu muito, construindo em torno da ausência sua própria versão do que poderia ter ocorrido. Entendi que essa tinha sido sua maneira de lidar com tal perda, e, assim, de alguma forma, poder preservar algo daquele profissional que se ausentava. Algo podia ser simbolizado em seus delírios e, mesmo tendo sido “prevenida” que psicoterapia poderia não ter qualquer serventia para um paciente manipulador como ele, decidi apostar acolhendo o que Frânio tinha a dizer.

Mas o que Frânio teria a nos dizer? O que o teria feito desejar tanto a internação? Frânio havia buscado aquilo que a Instituição podia lhe oferecer: um acolhimento. Em sua fala, dizia sentir-se como um elefante tendo que caber numa caixinha de fósforos. Quando pressionado, demonstrava desejar ser alguém importante e, para isso, relatava histórias sobre seus “feitos”. No decorrer do processo terapêutico passa a escrever um “livro” e me trazer fragmentos de sua vida sofrida. O “livro” falava de sua doença, de sua tentativa de cura, do desejo de se relacionar com os outros. Ao final de seu período de internação, manifesta a vontade de voltar a ter uma profissão. Imaginava poder fazer uma pós-graduação1 em psicologia, sem ao menos ter curso superior, o que, em um dos nossos últimos atendimentos, pôde ser entendido como um reconhecimento da minha presença ao seu lado, já que eu pude me aproximar dele e oferecer uma escuta.

No final de seu “percurso” de quase dois meses de internação, Frânio pôde se vincular e construir um lugar de “liderança” em alguns espaços da enfermaria. Logo que saiu, passou a namorar uma ex-colega de convívio e a vender produtos de beleza para ter seu próprio dinheiro. Retomou as atividades no Hospital-Dia, o que nos possibilitou a manter um contato regular.

O exemplo de Frânio nos leva a compreender como pode funcionar esse lugar de acolhimento encarnado pela Instituição, na medida em que ela oferece um espaço de escuta diferenciado e coletivo ao paciente em crise. Através de uma série de atividades que se dão na rotina institucional é possível promover uma certa reorganização subjetiva que possibilita a reinserção do sujeito no espaço social.

 

Referências Bibliográficas

CAVALCANTI, M. T. “Ética e assistência à saúde mental”In: FIGUEIREDO, A & SILVA FILHO, J. F. (org) Ética e Saúde Mental, Rio de Janeiro: Topbooks, 2001, 2ª ed.

_______; LOVISI, G & PINTO, A. “A psiquiatria e o social: aproximações e especificidades” In: Saúde Mental: campo, saberes e discursos, Rio de Janeiro: IPUB/CUCA, 2001.

FERREIRA, A. P. “A construção do caso clínico na internação psiquiátrica: uma direção para o plano terapêutico” In: Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, ano VIII n. 2, junho 2005.

SERPA JR, O. D. “Lacunas e dobras nas relações da psiquiatria com a medicina” In: SILVA, J. F. & RUSSO, J. (org) Duzentos anos de psiquiatria, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993.

SILVA, M. B. B. “Responsabilidade e reforma psiquiátrica brasileira: sobre a relação entre saberes e políticas no campo da saúde mental” In: Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, ano VIII n. 2, junho 2005.

ZANONI, Alfredo.  Psicanálise e Instituição. Belo Horizonte: Abrecampos, IRS/FHEMIG, 2000.

 

 

Notas

* Trabalho desenvolvido no setor Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto sob a supervisão do Prof.  Ademir Pacelli Ferreira e apresentado no X Fórum de Residência em Psicologia Clínico-Institucional, em maio de 2006.
** Psicóloga, Residente do 2º ano do Programa de Residência em Psicologia Clínico-Institucional do IP/HUPE/UERJ.
1 Na sua onipotência, ele estava convencido de que era bem graduado em psicologia a partir de sua experiência na psiquiatria.